quarta-feira, 30 de abril de 2014

A mulher na manga e as armadilhas da percepção



Todos já viram alguma notícia sobre aparições de santos, pessoas mortas, anjos e demônios em lugares inusitados: manchas em vidraças, espectros em fotografias, até mesmo em pizzas e torradas, como é comum ler em notícias após a morte de personalidades famosas. Pois bem, esta semana este fenômeno aconteceu em minha própria casa: uma mancha em uma manga na minha fruteira tinha a aparência de uma mulher, com parte do rosto coberto por seus cabelos.



Essa é uma característica da nossa percepção, a antropomorfização, que é atribuir traços humanos ao que não é humano. As histórias infantis estão cheias desses exemplos, animais e objetos falam, as crianças pequenas acreditam piamente que as coisas têm vida e sentimentos. Em certo grau, levamos isso vida afora, mesmo sem nos darmos conta. Fabricantes de carros sabem bem disso e desenham as frentes dos veículos de acordo com o tipo de “personalidade” que desejam conferir a ele: mais simpáticos para as mulheres, mais agressivo para os homens. Mesmo inconscientemente, caímos nessa armadilha, por mais que pareça coisa de maluco atribuir a um objeto uma personalidade ou a nuvens e manchas formas humanas.

Outro exemplo: quando viajamos ao exterior, nos encontramos com uma realidade muito diferente daquela que vivemos cotidianamente. Somos confrontados com outro idioma, outros códigos, outros costumes. A forma com que usualmente se lida com essa diferença é justamente comparando-a com o que já conhecemos: aqui é assim, lá em casa é assado – geralmente atribuindo juízo de valor, tal coisa é melhor que a outra. A leitura que fazemos não é do fenômeno “puro” (o que é, aliás, impossível), mas a partir daquilo que já nos é familiar. Assim sói funcionar com tudo que nos é estranho, domesticamo-lo com o que já sabemos para não nos sentirmos desamparados com o sem-sentido.

Um exemplo radical de como a percepção humana é pouco “objetiva”, determinada muito mais pela realidade da alma que a dos fatos, é o luto. Um fenômeno comum em pessoas enlutadas – seja por morte ou separação – é enxergar a pessoa perdida em vários lugares, projetar sua imagem sobre outros, muitas vezes com não mais que um traço em comum. O luto é uma espécie de loucura temporária na qual, mesmo “sabendo” que o outro não está mais lá, ele ainda segue muito presente, por isso é inevitável vê-lo, escutá-lo, senti-lo. O luto expõe como é nosso funcionamento normal, as coisas estão ali porque já as esperamos, estão em nosso psiquismo.

Esses exemplos revelam algo curioso – e fundamental – sobre a percepção humana: na maior parte das vezes, escutamos e enxergamos o que já sabíamos de antemão. A percepção é atravessada por nossos pensamentos, desejos, crenças; nesse sentido, somos todos mais ou menos preconceituosos. Olhamos os objetos e fenômenos através de uma grade simbólica singular, e tendemos a interpretá-los a partir disso. E mais: tendemos a atribuir às coisas e pessoas características e pensamentos nossos, é o que na psicologia se chama de projeção. Não é um mero mecanismo de defesa neurótico, é a forma habitual que temos de ler e entender o mundo.

É esse um dos principais desafios de uma psicanálise: ajudar o paciente a conseguir ler a realidade com um esquema diferente daquele com que se acostumou. Para além das circunstâncias reais que podem trazer sofrimento, quem sofre o faz porque se acostumou com formas de lidar com a vida que fazem sofrer. Não raramente, parte dessas circunstâncias – um relacionamento ruim, um trabalho desgastante – são mais consequência que causa, são escolhas feitas pela impossibilidade de se aproximar da vida de outra forma que a conhecida.

É inevitável enxergarmos mulheres em mangas, bem como termos uma capacidade muito limitada de compreensão, porque o que entendemos é em referência ao que já somos e sabemos. Dar espaço ao novo de fato é muito difícil, porém não impossível; aquilo que já sabíamos pode se tornar outra coisa se dedicarmos tempo e paciência a isso. Mas o esforço compensa: apesar de tornar tudo mais complexo, também torna a experiência de viver mais rica do que quando nos resignamos a apenas repetir o que já sabemos e conhecemos.

Paulo Gleich é psicanalista, membro da APPOA, jornalista.


Sul 21


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