quinta-feira, 17 de abril de 2014

Devaneios sobre proibições, drogas, e metáforas… ou da época em que falávamos com o carteiro

Perguntou.., foi expulso 

Sandra Djambolakdjian Torossian [1]

O carteiro entrega a correspondência. Sorridente fala generalidades sobre o bairro e me assegura que voltará mais tarde para entregar a correspondência da minha vizinha. Diz o nome dela com a intimidade de quem a conhece.

A cada andar percorrido, sucedem-se lembranças de outras épocas. Dos tempos em que falávamos com o padeiro, o leiteiro, o vizinho. Devaneios.

Já em casa leio algumas notícias na internet. Aparece na tela a seguinte notícia: Jovem estudante é expulso do fórum da liberdade por perguntar sobre o helicóptero do pó. A notícia diz, ainda, que no Fórum é permitido falar, mas com educação. Uma pedra de realidade me tira daquele estado de devaneio: expulsão do fórum da LIBERDADE por perguntar?

É um tema que me interessa. Trabalho com ele. Tráfico, usos de drogas. Vem à mente a imagem de dos tantos jovens com os quais trabalho que por muito menos pó do que aquele, perderam, também, a liberdade de circulação. Jovens violentados. Calados à força.

Cala-se o que precisa ser dito. Calam-se as perguntas. Destrói-se a curiosidade. É disso que se trata na mencionada “educação”? Falar com educação seria falar sem curiosidade? Silenciar as perguntas que precisam ser feitas.

Viajo pelos diversos cenários em que estive dialogando sobre silêncios impostos ao redor das drogas. Silêncios que omitem o prazer, ressaltando o dano. Por vezes, a ênfase no dano é substituída por falas sobre qualidade de vida. Nada muda. Continua-se omitindo o prazer.

Falar de tráfico? Só se for para situá-lo sempre do mesmo lado. Dos bandidos- traficantes que sempre fazem o mal (são jovens, negros e pobres, diz a última estatística sobre o tema).

Voltando aos tempos em que conhecíamos o carteiro, nos quais a correspondência não era sinônimo de contas a pagar, lembro-me das brincadeiras de mocinho e bandido. Elas mudaram? Talvez. Os papéis hoje giram, não se quer ser só mocinho. Ser bandido tem também seu valor. Crianças tem prazer em serem bandidas, sempre tiveram.

Calar não é brincar. O brincar está geralmente ao lado da expressão. Calar os “jovens traficantes e bandidos” não é brincadeira. Não se brinca quando se omite o destino das personagens do helicóptero repleto de cocaína. O helicóptero do prazer. Cocaína diverte e é fonte de renda para muitos. Ricos e pobres. Mas isso não se pode dizer. Merece expulsão.

Felizmente hoje esse modelo entra em crise. O tráfico já pode ser pensado na sua extinção, mas essa perspectiva ainda vem acompanhada da censura. Não à toa é no ambiente universitário que vários acontecimentos de expulsão e prisão envolvendo estudantes tiveram lugar. Repúblicas da maconha, segundo alguns. Jovens sem educação, segundo outros. A possibilidade de o tráfico transformar-se em comércio lícito ganhou já o palco legislativo. Mas ainda precisa calar esse assunto e ressaltar o perigo.

Ao pensar no carteiro, vem à minha memória as cenas do filme “O carteiro e o poeta”. Sobre os perigos, um senhor pergunta para a tia de uma jovem apaixonada. O que houve, ele passou a mão na bunda dela. Ao que a hábil senhora responde, Pior, ele a tocou com metáforas.

Através de metáforas falou-se do proibido na ditadura civil-militar. Hoje, abrem-se brechas para falas menos intermediadas pelo recurso metafórico, mas então o estranhamento tem um lugar. Restos. Um estranhamento inimigo que merece ser eliminado.

Certamente há de se falar com educação. Uma educação escrita a partir da possibilidade de escolher e não somente da repetição de proibições. Aguardamos as cartas dessa nova correspondência.

[1] Psicanalista, membro da APPOA, Profa. Depto. de Psicanálise e Psicopatologia Instituto de Psicologia/ UFRGS.


Sul 21

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