quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Política em tempos liberais



Roberto DaMatta

E por falar em liberalismo, impossível não crer que Lula e toda a cúpula do PT soubessem dos meandros do mensalão. Neste Brasil onde as relações pessoais são mais importantes do que as persuasões individuais e ideológicas - aos amigos tudo, aos inimigos a lei! E, com o PT, aos companheiros, tudo isso e o céu também... Numa sociedade marcada por múltiplas éticas, todas a serem respeitadas ou jamais discutidas, porque conhecemos seus praticantes, e dentro de um partido em que o projeto de poder sempre se confundiu com o futuro e o bem-estar da coletividade no qual ele existe, me parece impossível que Lula, José Dirceu, o famoso capitão do time, e outros próceres não tivessem articulado o plano de chegar ao socialismo compadresco petista pelo capitalismo selvagem nacional - o infame mensalão. 


Não posso, por tudo o que sei sobre o Brasil, aceitar - data vênia - a tese das defesas segundo a qual a república lulista agia à americana, individualisticamente, com cada qual cumprindo religiosa e burocraticamente o seu papel oficial, num país no qual as obrigações para com os amigos abrangem aceitá-lo até mesmo na sua mais profunda ingratidão, inveja e ressentimento. No Brasil, a amizade não se individualiza e, sendo relacional, engloba os amigos que são aturados ou suportados, por mais loucos que possam ser. Amigo de amigo é amigo; inimigo de amigo é inimigo; mulher de amigo é homem... Conforme dizia um rebelde pernambucano que confundia liberalismo com golpe: eu resisto a tudo, menos ao pedido de um amigo! Até no outro mundo, os pistolões e as rezas nos aliviam. E como ter uma cultura escravocrata se não culpamos e individualizamos o inferior e absolvemos os superiores, com os quais nos apadrinhamos compulsivamente?

Lula foi salvo pelo papel de presidente e lembra o caso Nixon, e, mais adiante, Clinton. Em Watergate, alguns pegaram prisão. Nixon, porém, livrou-se das grades, mas foi destituído do cargo. O tratamento privilegiado concedido aos presidentes (representados como mártires, como Lincoln e Vargas; ou como malandros que passaram raspando pelo fundo da agulha, como Clinton ou JK; ou dissolutos, como Nixon e Collor) mostra como mesmo em tempos pós-modernos a velha identificação entre Deus e rei continua atuando implicitamente junto a certos cargos públicos. Não é, obviamente, um elo axiomático como foi no Egito e no Oriente Médio, mas o papel exclusivo abarcado pela Presidência de um país ultrapassa facilmente os limites do partido e do governo, abarcando a sociedade e seus valores.

No caso do Brasil, há um claro messianismo que todos os populistas exploram sem cessar e que é a marca do lulismo. O Brasil sou eu, diz o nosso populismo real e divino. Um milenarismo tingindo ideologicamente que não é fácil de confrontar porque ele fala a linguagem arcaica da realeza divina e, no caso da nossa presidência divina, que isenta o presidente de atos impuros ou profanos, mesmo quando eles são inescapáveis, ele também discursa usando o mais moderno jargão desta nova língua nacional que se chama economês. Esse idioma de um demonizado neoliberalismo que fala em mercado, competição, igualdade perante a lei, moeda forte, responsabilidade pública, fiscal e pessoal, e meritocracia. Ou seja, tudo isso que o grosso das elites brasileiras odeiam de todo o coração. E que - não tenhamos dúvidas - é o que está em jogo no julgamento desse desprezível mensalão.

Estadão

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