segunda-feira, 14 de maio de 2012

Judiciário, entrave no combate ao trabalho escravo




PEC do Trabalho Escravo abre novo caminho para extinguir o crime no país, mas falta trabalhar formação de juízes e afastar possibilidade de conversão de prisão em cestas básicas

João Peres

Para o ministro do STF Gilmar Mendes, diferenças regionais não podem ser consideradas trabalho escravo

São Paulo – Se os planos do governo federal saírem dentro do planejado e a Câmara aprovar esta semana a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438, que destina para reforma agrária terras nas quais seja flagrado o uso de mão de obra escrava, faltará superar a barreira do Judiciário para levar adiante a aplicação dos instrumentos contra o problema no Brasil.

Embora o texto em tramitação na Câmara desde 2002 preveja a destinação direta da terra para reforma agrária, parte da Justiça brasileira tem sido um refúgio para descumprir a legislação ligada à propriedade rural. Para quem acompanha o assunto, o que ocorre é uma questão de formação acadêmica. Ariovaldo Umbelino, professor do Departamento de História e Geografia da USP, entende que a inexistência de disciplinas voltadas ao Direito agrário nas faculdades é um entrave que se soma à falta de consolidação do arcabouço jurídico existente no setor, o que abre brechas para a burla. “Na realidade, o Brasil dispõe de uma legislação com certa qualidade, mas existe uma prática histórica de descumprimento dessas leis”, diz. “Há uma pressão muito forte de parte da mídia no sentido de não informar a sociedade sobre o cumprimento correto das leis.”

A maior parte dos processos por crime de trabalho escravo resulta em absolvição ou, no máximo, em uma pena convertida no pagamento de cestas básicas e na prestação de serviços comunitários. Trata-se de uma visão de um crime menor, entendido como uma infração trabalhista. Mesmo quando há farta documentação: no início deste ano, o Ministério Público Federal no Pará recorreu contra a decisão do juiz José Valterson de Lima de extinguir uma ação contra os proprietários da fazenda Pagrisa, em Paragominas.

O pedido do MPF tomava como base o relatório do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego. 1.064 trabalhadores em uma fazenda sem água potável nem condições de higiene, submetidos a jornadas de corte de cana que começavam de madrugada e terminavam ao entardecer. Aos funcionários era servida comida azeda, descontada do salário, mas, para o magistrado, só são válidas as provas acumuladas após o início do processo. No recurso, a procuradora Maria Clara Barros Neto se viu na obrigação de lembrá-lo o óbvio: não se poderia tornar a colher evidências de trabalho escravo porque essas condições foram desfeitas quando da operação.

“É óbvio que a cultura de nossos juízes continua em muitos lugares problemática porque eles têm, a grosso modo, a mesma origem social e foram formados em um mesmo ambiente que cultivava os valores da elite dominante”, afirma Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Para ele, é necessário promover uma reforma no artigo do Código Penal que trata do crime de trabalho escravo. A Lei 10.803, de 2003, prevê penas que variam de dois a oito anos de prisão. Para o integrante da CPT, seria necessário endurecer a punição para evitar que se faça a conversão em cestas básicas.

Este ano, ao votar a transformação em réu do senador João Ribeiro (PR-TO) pelo crime de trabalho escravo em uma de suas fazendas, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), expôs sua visão sobre o tema, minimizando a questão, atribuída às diferenças regionais brasileiras. “A inexistência de refeitórios, chuveiros, banheiros, pisos em cimento, rede de saneamento, coleta de lixo é deficiência estrutural básica que assola de forma vergonhosa grande parte da população brasileira, mas o exercício de atividades sob essas condições que refletem padrões deploráveis e abaixo da linha da pobreza não pode ser considerado ilícito penal, sob pena de estarmos criminalizando a nossa própria deficiência”, argumentou à ocasião, sendo vencido por seus pares.

Publicado em 2008, o 2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo constatava um bom avanço na fiscalização do problema e na conscientização dos trabalhadores sobre seus direitos. “Mas avançou menos no que diz respeito às medidas para a diminuição da impunidade e para garantir emprego e reforma agrária nas regiões fornecedoras de mão-de-obra escrava”, dizia o documento, que pedia a “interiorização” das estruturas do Judiciário por meio da criação de novos cargos.

Para Frei Xavier, apesar dos entraves, há a possibilidade de avanços com a formação de uma nova geração de integrantes dos ministérios públicos do Trabalho e Federal e da Justiça. Marcus Barberino, juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT), também vê com otimismo a possibilidade de combate à escravidão contemporânea após a aprovação da PEC. “No momento em que você coloca a questão fundante na sociedade capitalista no campo, que é a propriedade, sob risco, eu não tenho dúvidas de que a pessoa vai se sentir estimulada a cumprir a lei”, afirma. “É claro que no momento em que você sinaliza que existe a sanção, e quando essas sentenças começarem a eclodir, o efeito pedagógico na classe empresarial rural será radical e formidável."

Rede Brasil Atual

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