segunda-feira, 19 de abril de 2010

Desastres e política



Sob o pretexto de ‘salvar’ os pobres do desastre, as antigas vozes da especulação renasceram das cinzas. Afinal de contas, hoje a carência de terrenos é muito grande e várias das favelas e bairros operários estão em áreas, antes desprezadas, e agora cobiçadas.

Luís Carlos Lopes

Somente um coração insensível não se emocionaria com a grandeza do desastre das últimas chuvas que caíram sobre o Rio de Janeiro. Imaginar, a partir do que as mídias vêm repetindo, que em apenas um lugar morreram de uma só vez 200 pessoas é algo muito duro. As imagens captadas pelas mídias mostram uma espécie de vala comum, agora escavada por máquinas e trabalhadores, na busca de impossíveis sobreviventes. Pensar que as vítimas moravam em uma favela construída sobre um velho lixão abandonado pelo poder público demonstra a gravidade dos problemas sociais urbanos brasileiros. A notícia, a confirmar, de que um número próximo de dez milhões de brasileiros habitariam em áreas de risco é motivo de assombro e consternação.

Entretanto, é preciso não cair no jogo da hipocrisia e do faz-de-conta. Nada disso é novo ou desconhecido dos brasileiros que se preocupam com o destino de seus irmãos. É difícil acreditar que o poder público de cada município e de cada Estado não soubesse que algo poderia ocorrer. É possível crer que o poder central não tenha como acompanhar a situação de cada local. Ele está em Brasília, onde estes acidentes são bem raros devido à topografia e o clima do cerrado. Os desmoronamentos de habitações que seguem o curso dos deslizamentos de terra é algo corriqueiro em grande parte do país. As inundações também não são nenhuma novidade. Conhecer os pontos sensíveis e as medidas preventivas a tomar consistem em problemas locais.

Há uma farta experiência de incidentes como este, que ganharam magnitude, quando as cidades cresceram e ocuparam enormes espaços com pessoas, suas casas e outras edificações, nos últimos sessenta anos. O desenvolvimento do capitalismo brasileiro implicou concentração urbana, nesta, as maiores tragédias se replicam. As cidades cresceram com a vinda de trabalhadores do campo, metamoforseados em operários do capital e expulsos da terra pelo fato da reforma agrária total nunca ter passado de uma promessa de cem anos. As cidades incharam, os salários baixaram e as pessoas tiveram que sobreviver, com os meios disponíveis.

O modelo da urbe fluminense é o da exclusão. Os melhores terrenos urbanos foram loteados e adquiridos para o uso das classes ricas e médias. Para os pobres, sem os quais não haveria qualquer desenvolvimento, restaram os morros, as várzeas alagáveis, as periferias de baixo valor imobiliário, isto é, as sobras do dito desenvolvimento urbano. O nome ‘baixada’ não só indica pontos e coordenadas geográficas, fala também de regiões de menor valor, igualmente usadas pelos pobres para morar nas chamadas cidades dormitórios. O baixo custo destas terras relaciona-se diretamente à possibilidade de alagamentos por estarem, não raro, abaixo do nível do mar. Normalmente, estes terrenos foram grilados, loteados e, em muitos casos, ocupados pela força da miséria. Em suma, seus habitantes ficaram com o que sobrou da grande especulação imobiliária que assaltou as terras do Rio, de Niterói e da chamada Região dos Lagos e de outros municípios fluminenses, desde meados do século passado. O mesmo modelo vem se repetindo, com adaptações, nas grandes, médias e pequenas cidades do país.

A mesma situação é visível por toda América Latina. Sobram para os pobres os terrenos onde os problemas são maiores. Mesmo assim, muitos deles são disputados e objeto de contendas jurídicas e tentativas de desapropriação. Os trabalhadores assalariados, os subempregados e os desempregados ocupam o que conseguem adquirir ou tomar. As cidades latino-americanas contêm cidades dentro de cidades com realidades inteiramente díspares. As metrópoles desta região do mundo passaram a ser símbolos da exclusão social. De modo geral, elas são ‘organizadas’ de modo caótico, concentrando em algumas se suas partes problemas muito graves.

Voltando ao caso do Rio, não há favelas nos morros do Pão-de-Açúcar por duas razões. O Exército há muito tempo ocupa o entorno e estes são muito íngremes e rochosos. Na parte mais alta da floresta de Tijuca, onde estão o Corcovado e os demais picos que dominam o local, as favelas foram geograficamente contidas até certo ponto. Isto porque o terreno é muito íngreme, foi criado um parque nacional vigiado por guardas florestais e há uma antiga ocupação de classe média – Alto da Boa Vista, Santa Tereza, etc. Boa parte das favelas cariocas está colada ao que sobrou da Mata Atlântica, na mesma floresta e nos morros litorâneos, em um primeiro momento, desprezados pela especulação. Nos bairros onde elas proliferam, elas estão sempre nos morros e nos terrenos de ‘ninguém’ isto, naqueles abandonados por seus proprietários ou pelo poder público.

É neste quadro que a polêmica entre urbanização e remoção volta a estar em tela. Sob o pretexto de ‘salvar’ os pobres do desastre, as antigas vozes da especulação renasceram das cinzas. Afinal de contas, hoje a carência de terrenos é muito grande e várias das favelas e bairros operários estão em áreas, antes desprezadas, e agora cobiçadas. O lacerdismo foi, a partir do fim da década de 1950, um dos arautos das remoções, chegou a praticar algumas. Seus discípulos continuaram a fazer o mesmo, durante a ditadura militar. Com o tempo, a política de remoção enfraqueceu-se, por efeito da forte reação popular, e os poderes públicos começaram a defender a de urbanização. Com todos os problemas desta opção, esta é a que é mais bem aceita pela população mais pobre que, aliás, deve ser ouvida e respeitada.

Não se pode defender que se construam casas de ricos ou de pobres em terrenos com a possibilidade de deslizamentos ou de soterramentos, bem como, em áreas que estas construções vão concorrer para aumentar a poluição. Não se trata de defender a catástrofe. É bom lembrar que tudo isto é feito à luz do dia e na frente do poder público, que comumente se omite e diz, depois do desastre, cinicamente que não sabia de nada ou que “a responsabilidade é de todos”. Quem são estes ‘todos’, cara pálida? Ao que se saiba, não há qualquer ajuda técnica governamental para a edificação privada em favelas. As obras governamentais circunscrevem-se as áreas públicas. As construções são milagrosamente improvisadas e se mantêm em pé porque seus construtores são os mesmos que edificam os prédios do ‘asfalto’.

O que falta é um projeto de planejamento realista que resolva os problemas, sem penalizar os que moram nessas comunidades. É sempre bom lembrar que ali estão por absoluta falta de opção nos territórios fechados pela especulação. As favelas e outras comunidades pobres foram edificadas pelos que construíram a cidade em vários momentos históricos. Ainda hoje, nelas moram os que trabalham em inúmeros serviços prestados aos que moram no ‘asfalto’. Ao se remover uma moradia, por estar em região de risco, dever-se-ia dar algo pelo menos igual à família removida. Um dos grandes problemas das antigas remoções é que no novo endereço era impossível manter os velhos empregos e a rede de solidariedade existente entre os mais pobres. Os órgãos governamentais não deveriam punir os que moram nessas comunidades e, sim, ajudá-los a sobreviver.

Os responsáveis por esta tragédia atual, como por muitas do passado, são os que poderiam ter tomado medidas efetivas, prevendo o desastre, antes de incidentes como os que estamos presenciando. As comunidades pobres não podem ser responsabilizadas por acidentes que lhes custam vidas e enormes prejuízos materiais. Isto é um contra-senso, compreensível em uma época de fácil troca de verdadeiros significados, pela mentira política de várias faces do poder. A luta do homem para domesticar a natureza é tão antiga quanto a própria humanidade. Existem conhecimentos, tecnologias e meios materiais para que não aconteça o pior. O problema que se deveria melhor cuidar é o da discussão do modelo de sociedade que se deseja e do tipo de Estado que deve governar nas várias esferas do poder.

Luís Carlos Lopes é professor e autor do livro "Tv, poder e substância: a espiral da intriga", dentre outros

Carta Maior

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