quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O Brasil em cinco trechos de Lima Barreto

Igor Gomes
A bem dizer, a carestia atual entre nós é fabricada por aquela gente que de há muito se pôs além e acima do ideal de pátria, é a gente da finança que vai até a funestas guerras para ganhar dinheiro e todo o nosso nacionalismo contra ela é vão e ridículo. Para derrubá-la é preciso abalar e modificar ideais e sentimentos [...]. O mal-estar da nossa vida não vem da massa geral de estrangeiros, tão necessitada como a maioria dos nacionais; vem da injustiça das relações econômicas entre pobres e ricos. Cessem elas, que o mundo será um paraíso e a pátria ficará quase sempre sendo para cada qual o lugar em que nasceu.

A atualidade de Lima Barreto (1881-1922) se mede de forma material: por suas palavras. Autor pouco difundido em sua época, foi a partir dos trabalhos de Francisco Assis Barbosa (meados do século passado) que passou a ser revisto entre os nomes maiores da literatura brasileira. Hoje é bastante estudado na Academia, mas ainda é preciso um movimento que repense seu papel dentro do contexto do modernismo brasileiro.

Já falamos várias vezes no Suplemento Pernambuco sobre a necessidade constante de relê-lo para entender algumas dinâmicas sociais, históricas e políticas do país. Desta vez, pedimos a escritores e estudiosos da obra desse autor para nos indicar trechos das obras de Lima que dialoguem com a atual situação do país.


***

José Luiz Passos, sociólogo e escritor, venceu o prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) em 2013 com o romance O sonâmbulo amador (Alfaguara). É professor titular de literatura brasileira e portuguesa na Universidade da Califórnia. O trecho é de Triste Fim de Policarpo Quaresma. Sobre o trecho, afirma Passos: “o desencanto de Quaresma com a presidência de Floriano Peixoto encontra um paralelo perfeito com a situação atual. Depois de um período de admiração titubeante com os caminhos da República, a ingenuidade patriótica de Quaresma entra em choque com o silencioso e autocrático Floriano. O desencantamento vem do fato de que não havia mais confiabilidade na governança. Floriano é descrito como preguiçoso e indiferente ao bem da nação. Entrou na presidência como vice”.



TRECHO: Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepção de Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu entusiasmo e sinceridade nem tampouco a ideia que ele fazia do ditador. Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que o chamava de visionário, que não avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer, desinteressado daquelas altas cousas de governo como se não o fosse!... Era pois para sustentar tal homem que deixara o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural? Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero, uma raiva de si mesmo; mas em seguida considerava: o homem está atrapalhado, não pode agora; mais tarde com certeza ele fará a cousa... Vivia nessa alternativa dolorosa e era ela que lhe trazia apreensões, desânimo e desesperança, notados por sua afilhada na sua fisionomia já um pouco acabrunhada.



Luciana Hidalgo, autora de O Passeador (Rocco), cujo protagonista é Lima Barreto; e doutora em literatura pela UFRJ (também sobre Lima Barreto). O trecho é de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá:



TRECHO: Poucas vezes fora eu ao amigo Pedro II e as poucas em que fui, assisti ao espetáculo das torrinhas; de modo que aquela sociedade brilhante que via formigar nas cadeiras e camarotes, de longe parecia revestida de uma grandeza que me intimidava. Debruçado na grade da galeria, as casacas corretas e os ricos vestuários das senhoras eram um deslumbramento para os meus pobres olhos; e, por não ser do meu gosto analisar os espetáculos que me agradam, aceitei aquela sociedade como deslumbrante, grandiosa e brilhante. Contudo, vulgarmente, em muito, na entrada, parecia-me que aquelas damas, envoltas em capotes e outros agasalhos, tinham o ar de quem ia para o banho; enquanto, na sala, de colos nus, sob o rebrilho das luzes, surgiam-me como mármores de museu. (...) Vi algumas de perto e as cadeiras dos camarotes, que me pareceram bem inferiores às da sala de jantar da minha modesta casa. Notei-lhes o forro de reles papel pintado, o assoalho de tábuas de pinho barato; alonguei o olhar pelo corredor e além de acanhados, julguei-os sujos, vulgares, a guiar os passos para lugares escusos. (...) Era para brilhar ali que nós todos brigávamos, matávamos, e roubávamos, por sobre os oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. (...) eu me choquei bruscamente com aquele ambiente hostil. Não houve uma só palavra que me ferisse, nem sequer um olhar; entretanto, só em contemplar aquela grande gente, que me parecia tão rica e tão brutal, eu me senti inferior. Donde me vinha esse sentimento? Era a minha cultura? Não; eu recebi a mesma instrução dos mais instruídos da minha idade que lá estavam. Era do meu caráter, das falhas da minha moralidade: não, também, eu sentia que as tinha; contudo, em comparação com o grosso daqueles cavalheiros tão limpos, eu era puro, imaculado. Nada mais me restava comparar, a não ser que o meu sangue me fizesse perfeitamente inferior, mas este mesmo eu cria correr em muitos daqueles a quem me julgava inferior. Donde vinha, portanto, esse sentimento que me entristecia? (...) Lembrei-me que eles tinham vindo do Brasil todo, de todos os seus pontos, a brigar, a roubar os seus parentes, as suas mulheres e os governos, a furtar pobres e ricos; a matar também levas e levas de imigrantes nos árduos trabalhos agrícolas. Era aquele o seu prêmio!... Tinham saltado por cima de todas as conveniências, por cima de todos os preceitos morais – tiveram coragem, enquanto eu... (...) Percebendo a verdade, revoltei-me contra a minha fraqueza, contra a minha alma bruxuleante e pulha, que me fazia deter diante das regras do decálogo, diante dos preceitos morais. Eu era um covarde, um escravo; eles, príncipes e reis. Não serei mais assim!... Era preciso brigar – briguemos! Escolheram a guerra – tê-la-ão!



Lilia Moritz Schwarcz, antropóloga e historiadora, é professora da USP. Pesquisadora da obra de Lima Barreto, é autora de diversos livros e em 2017 lançará uma biografia do autor. Também atua como editora da Companhia das Letras. O trecho é da crônica (ou conto) Manuel de Oliveira, que saiu na revista Santa Cruz em 1921. Diz a pesquisadora: “o paralelo é claro com o momento presente. como ainda tentamos entender a questão racial de maneira paternalista e buscando preservar laços de dependência”.



TRECHO: A história da mágoa que o levou a uma semi-loucura, ele me contou muitas vezes de um modo inalterável. Cabinda de nação, ele viera muito menino da Costa d’África e um português hortelão o comprara e lhe ensinara o ofício de plantar couves. O seu senhor tinha uma grande horta pelas bandas da rua do Pinheiro, no Catete, e logo que o pobre Manoel – era esse o nome do meu cabinda – cresceu um pouco, pela manhã, com verduras cuidadosamente contadas pelo senhor, ele saía para o Catete e Botafogo a vender couves, repolhos, cenouras, etc. Levavam as verduras e legumes preços marcados, mas ele as podia vender mais caro, ficando para si o excedente. Durante anos, Manoel de Oliveira, pois, como era costume, veio a usar sobrenome do senhor, fez ele isso, ao sol e à chuva, juntando nas mãos do senhor os seus lucros diários. Quando chegou a certa quantia estipulada, o Oliveira, dono da horta, deu-lhe a sua carta de alforria. Não sabia da companhia do seu antigo senhor e com ele continuava a trabalhar, mediante salário.



Habituado a economizar, continuava a fazê-lo, mas não sem que, de quando em quando, comprasse o seu “gasparinho”. Um belo dia, a sorte bafejou-o e a loteria deu-lhe um conto de réis, que ele guardou nas mãos do patrão. (…)



Por esse tempo, veio Manoel de Oliveira a conhecer uma pretinha escrava que acudia pelo nome de Maria Paulina. A comborça interessou-o e ele, à vista das condições de fortuna em que estava, resolveu, agir os preliminares indispensáveis, tomar estado. Libertou a rapariga, comprou uns móveis toscos, alugou um tugúrio e foi morar com a Maria Paulina. As coisas correram bem até certo tempo. (…) Assim, ia correndo a sua vida, quando ele teve a honra, na sua humildade, de ser objeto de drama. Maria Paulina fugiu... O fato abalou o pobre preto em todo o seu ser. Ficou meio pateta, deu em falar sozinho, abandonou a horta e deixou-se errar a esmo pela cidade, dormindo aqui e ali.



A polícia apanhou-o e meteu-o no Asilo de Mendigos. Daí foi enviado para a ilha do Governador e internado numa espécie de colônia de pedintes que o governo imperial fundou nos seus últimos anos de existência. Vindo a república foram essas colônias, pois eram duas, transformadas nas atuais de alienados. Meu pai foi, em 1890, nomeado para um pequeno emprego delas. Fomos todos morar lá e foi então que eu conheci Manoel de Oliveira (…)



O seu grande amor era a horta. O seu antigo senhor tinha-lhe inventado esse gesto que não o largou até a hora da morte (…) Devo-lhe muito de amor e devotamento. Conto um pequeno fato. Quando minha família atravessou uma crise aguda; quando veio a nossa tragédia doméstica, Manoel de Oliveira chegou-se a mim e emprestou-me cem mil reis que economizara.



Muitos outros fatos se passaram entre nós dessa natureza, e, agora, que o desalento me invade, não posso relembrar essa figura original de negro, sem considerar que o que faz o encanto da vida, mais o que qualquer outra coisa, é a candura dos simples e a resignação dos humildes...”



Felipe Botelho Corrêa, pesquisador, organizou o livro Sátiras e outras subversões (Penguin-Companhia), com textos até então desconhecidos de Lima Barreto. É professor de Estudos Brasileiros, Portugueses e Lusoafricanos no King's College (Inglaterra). O trecho abaixo é da crônica O nacionalismo, de 1920:



TRECHO: A bem dizer, a carestia atual entre nós é fabricada por aquela gente que de há muito se pôs além e acima do ideal de pátria, é a gente da finança que vai até a funestas guerras para ganhar dinheiro e todo o nosso nacionalismo contra ela é vão e ridículo. Para derrubá-la é preciso abalar e modificar ideais e sentimentos [...]. O mal-estar da nossa vida não vem da massa geral de estrangeiros, tão necessitada como a maioria dos nacionais; vem da injustiça das relações econômicas entre pobres e ricos. Cessem elas, que o mundo será um paraíso e a pátria ficará quase sempre sendo para cada qual o lugar em que nasceu.



Anco Márcio Tenório Vieira, professor da UFPE e especialista em literatura brasileira. O trecho escolhido é de Triste Fim de Policarpo Quaresma:



TRECHO: Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios. Compõe-se em geral de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa pelas ruas esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com mais força que a burguesia de Petrópolis e Botafogo. Isto é só lá, nos bailes, nas festas e nas ruas, onde se algum dos seus representantes vê um tipo mais ou menos, olha-o da cabeça aos pés, demoradamente, assim como quem diz: aparece lá em casa que te dou um prato de comida. Porque o orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita carne-seca, muito ensopado — aí, julga ela, é que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da distinção.



Suplemento Pernambuco


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