quinta-feira, 9 de abril de 2015

Sofismas da lei



José de Souza Martins - Abril 2015


Na mesma semana do Sábado de Aleluia, em que tradição e barbárie se encontram na malhação de Judas Iscariotes pela traição a Jesus Cristo, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de redução da maioridade penal dos brasileiros para 16 anos. Se passar pelo plenário da Câmara e o do Senado, os adolescentes que cometerem crimes graves já não serão beneficiados pelas penas aparentemente brandas aplicáveis aos que não sabem o que fazem. Serão julgados como adultos: se supostamente sabem o que fazem quanto votam, certamente sabem o que fazem quando matam. É o silogismo da lei.


A questão é muito mais complicada, sociologicamente falando. A sociedade pós-moderna, que põe nas mãos de quem adulto não é instrumentos de adulto, como as drogas e as armas de fogo, caracteriza-se, justamente, pela contradição de combinar o que de fato não combina. Dota imaturos de instrumentos de poder, como a pistola que mata, mas também o direito de voto, quando ainda estão sob tutela dos pais. O que engana, mas não amadurece.

A redução da maioridade penal acrescenta contradições ao caos de desencontros entre modos de ser que tornam a figura do cidadão, na sociedade brasileira, uma mistura de descombinações. De modo sumário, o Brasil decreta a antecipação da condição de adulto dos imaturos e decreta que adolescente não é mais adolescente para vários e fundamentais efeitos. Livra-se da conta que toda nação deve pagar para formar devida e a adequadamente suas novas gerações. Não paga o que deve, a formação do jovem, e quer receber o que não merece, seu trabalho e seu voto, sua renúncia ao direito de ser jovem e de ser protegido.

Ao mesmo tempo, o Brasil não leva em conta que a efetiva entrada na idade adulta vem sendo, em sentido contrário, adiada cada vez mais. Não só porque os requisitos para ser adulto tornaram-se outros e mais demorados, pois já não basta ter força física para trabalhar e capacidade de procriação para constituir família e entrar efetivamente no mundo dos adultos. É preciso encontrar, antes, emprego estável, salário compatível com as necessidades de hoje de uma família recém-constituída, estudar o número suficiente de anos para ter a profissão compatível com esses reclamos da existência. Já foi o tempo do analfabeto e do apenas alfabetizado baratos. A preparação para ser adulto hoje prolonga a adolescência para muito além dos marcos cronológicos que a definiam há duas gerações. O comportamento imaturo de certo número de nossos estudantes universitários, no modo predatório e irracional como se comportam em movimentos de reivindicação e protesto, é um bom indicativo de que estão se tornando adultos muito mais tarde, com corpo de gente grande e mentalidade de criança.

A maioridade legal recua para os 16 anos de idade, mas a maioridade real já não é alcançada antes dos 25 anos de idade. Há 60 anos, aos 25 anos, um homem já era consolidado pai de família e uma mulher já não estava muito longe de ser avó. Hoje, grande número de pessoas dessa idade ainda está indeciso entre casar e “ficar” e ainda tem sérias dúvidas quanto à conveniência de constituir família. Portanto, a lei vai numa direção e a realidade vai noutra.

Muitos argumentam que a redução da maioridade penal dissuadirá de delinquir os delinquentes potenciais, isto é, os jovens em maior risco de cair na tentação da criminalidade. Mas para que isso funcionasse, seria necessário que a sociedade tivesse, para as novas gerações, uma alternativa de destino. Não a tem. Um dos respeitáveis argumentos do excelente documentário de João Moreira Salles, “Notícias de uma guerra particular”, é o de que um adolescente no tráfico de drogas pode ganhar em uma semana muito mais do que ganha seu pai em um mês de trabalho. Vale mais a pena, portanto, correr o risco de viver uma vida curta e boa do que uma vida longa, pobre e sofrida, à espera de uma realização pessoal que não virá.

A casual coincidência da decisão da Comissão de Constituição e Justiça com a semana em que em todas as regiões do Brasil ainda se faz a malhação de Judas encerra o elemento cultural que move uma coisa e outra. Na malhação estão contidos os elementos do arquétipo da violência coletiva que é entre nós frequente. Ou sociologicamente, os elementos do tipo ideal que permite a compreensão da conduta de massa do brasileiro em face de situações de medo e de adversidade. A malhação é praticada no Brasil desde os tempos coloniais. Sintetiza as bases dos nossos preconceitos e é prática folclórica que passa de geração em geração os ensinamentos da vingança coletiva. Nesse sentido, a redução da maioridade penal, a malhação de Judas e os linchamentos entre nós frequentes tem um único feixe de significação.

Poder-se dizer que a própria sociedade vai mais longe do que o Legislativo na decisão que está tomando: já decidiu pela pena de morte dos delinquentes linchando-os. No país que mais lincha no mundo, que é o nosso, a violência dos linchadores é muito maior quando a vítima é jovem. Dos linchados por mais de um milhão de brasileiros nos últimos 60 anos, na faixa dos menores de idade, 47% foram mortos, na dos jovens já maiores de idade, 31% o foram para 39% da média. Uma significativa indicação de que esta sociedade devota um ódio particular aos jovens transgressores. Se a antecipação da idade de punição provocasse a diminuição da criminalidade, a ocorrência em média de um linchamento por dia no Brasil já teria tido efeito. O que se vê, no entanto, é o aumento da criminalidade. O diagnóstico que capeia a proposta de redução da maioridade penal, tudo indica, é equivocado. Há outros fatores por trás da criminalidade juvenil, que não inocentam nem o Estado nem a sociedade. A mudança da lei criará para muitos o conforto de um bode expiatório.

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José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre outros livros, autor de Linchamentos – a justiça popular no Brasil (Contexto, 2015).

Fonte: O Estado de S. Paulo, 5 abr. 2015


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