quarta-feira, 22 de abril de 2015

Quando mães jogavam os filhos no rio



Alemanha relembra a onda de suicídios nos últimos meses da II Guerra Mundial. Los aniversarios se convierten en arma diplomática

Luis Doncel

O documento é estremecedor. Vinte e oito páginas repletas de nomes acompanhados da data e do motivo da morte. Escolhida um aleatoriamente, aparecem várias famílias —os Gaut, os Schubert (mãe e filha), os Rienaz (também mãe e e filha)…—. Todos morreram em 8 de maio de 1945. E todos por uma mesma causa: suicídio.



Estamos no Museu Regional de Demmin, uma pequena cidade no noroeste da Alemanha, que nesses dias revive seus dias mais dramáticos. Nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial, quando a vitória final tantas vezes anunciada por Adolf Hitler parecia cada vez mais irreal e o Exército Vermelho se aproximava, entre 700 e 1.000 cidadãos de Demmin –que à época tinha 15.000 habitantes— preferiram morrer a ter que viver em um mundo que não fosse governado pelos nazistas. Foi o maior suicídio em massa na história da Alemanha.

Bärbel Schreiner, então uma menina de 6 anos, esteve a ponto de ser vítima dessa loucura coletiva. Mas seu irmão conseguiu convencer sua mãe a não fazer com os dois filhos o que tantos pais faziam naqueles dias. “Mamãe, nós não, né?”, recorda Schreiner da fala de seu irmão disse, enquanto observava o rio Peene, cheio de cadáveres. “Ainda me lembro da água avermelhada pelo sangue. Sem essas palavras, tenho certeza que minha mãe teria afogado nós dois”, afirma, com a voz embargada, essa mulher de 76 anos.

Registro de mortos em Demmin, no Museu Regional. / Luis Doncel

O caso de Schreiner não foi uma exceção. Uma onda de suicídios atingiu a Alemanha entre janeiro e maio de 1945. Não existem números exatos, mas os historiadores calculam que entre 10.000 e 100.000 pessoas tenham tomado essa decisão. Ao tirar a própria vida, era normal que os adultos levassem também seus filhos. Foi o que fez Joseph Goebbels, ministro da Propaganda e chanceler nos últimos dias do III Reich, quando ele e sua mulher, Magda, envenenaram os seis filhos.

Escreveu-se muito sobre o suicídio dos líderes nazistas. Além de Hitler, cuja morte completará 70 anos em 30 de abril, e Goebbels, também tirou a própria vida o chefe das temidas SS, Heinrich Himmler. Mas, até agora, não se havia prestado muita atenção aos cidadãos comuns que seguiram o destino de seus líderes fanáticos. Justamente essa falta de conhecimento sobre a tragédia que milhares de pessoas anônimas viveram levou o historiador Florian Huber a escrever Filho, Me Promete que Vai Atirar. O sucesso do livro, que em dois meses já vendeu mais de 20.000 exemplares, surpreendeu inclusive o autor.


“Estudei história e nunca tinha ouvido falar desse episódio trágico. Um dia, vi em um livro um pé de página que mencionava a onda de suicídios nos últimos meses da guerra e decidi investigar”, conta em um café de Berlim. Mas, o que levou esses homens e mulheres comuns a dar um tiro em si mesmos, se enforcar numa árvore ou se jogar no rio mais próximo? Medo das represálias dos vencedores? Fanatismo nazista? Ou sentimento de culpa pelos abusos de 12 anos de nacionalismo e seis de guerra? “Uma mescla de todos esses fatores. Também teve influência um efeito psicológico que transforma o suicídio em algo contagioso, quase como uma infecção. Se você visse nesse café todo mundo começando a se matar, talvez você cogitasse também”, responde.

"Mamãe, nós não", disse o irmão de Schreiner ao ver os mortos no rio

A epidemia suicida se estendeu por muitos rincões da Alemanha, mas por que afetou principalmente alguma áreas, como o leste do país, e muito especialmente lugares como Demmin? Huber explica a mescla de circunstâncias históricas e geográficas que tornaram essa localidade uma ratoeira da qual era impossível escapar. “Rodeada por três rios, forma uma espécie de península. Em sua fuga, os líderes nazistas dinamitaram as três pontes existentes. De forma que, quando os soviéticos chegaram, não podiam continuar avançando. Os soldados do Exército Vermelho chegaram em 30 de abril, com vontade de abandonar logo Demmin para comemorar a festa de 1º de maio”, afirma.

Justamente no mesmo dia em que Hitler se matou com um tiro dentro de seu bunker em Berlim, os soldados vermelhos queimavam Demmin e difundiam o pânico. Os anos de guerra, a sede de revanche e a bebida que correu pela noite fomentavam a violência dos soviéticos. O resultado desse coquetel foi assombroso. Huber afirma que os rios se tornaram cemitérios durante semanas; e que os trabalhos para retirar os corpos da água se estenderem entre maio e julho daquele ano. “As testemunhas se lembram de pessoas penduradas em árvores por toda parte”, acrescenta.

Uma mistura de fanatismo nazista, medo e contágio explica a loucura coletiva

O sofrimento dos civis alemães durante a guerra –sejam os abusos de mulheres ou os bombardeios de cidades como Potsdam, que nesta semana completou 70 anos— é um tema complexo. Não há dúvidas de que muitos inocentes sofreram as consequências, mas esse sofrimento também serve de desculpa para os neonazistas, que continuam confundindo e igualando a dor do povo agressor com a dos agredidos.

O mesmo ocorre ainda hoje em Demmin. Há uma década, em todo 8 de maio, dia da rendição, um pequeno grupo de manifestantes ligados ao partido de extrema direita NPD relembram as vítimas alemães. “Durante os anos do comunismo, esse tema era um tabu. Ninguém quer lembrar as violações ou crimes cometidos pelos soldados que nos libertaram do fascismo. E agora os neonazistas também utilizam a dor do passado para os seus fins”, afirma Petra Clemens, a diretora do museu, rodeada por vestígios da história da região. Nessa castigada cidade do leste alemão, o desemprego atinge 17% da população (um percentual altíssimo para um país no qual a média está em 6,9%) e o alcoolismo tem seu preço.

Demmin foi talvez o caso mais extremo da loucura coletiva que invadiu o país nos primeiros meses de 1945, mas não o único. Em Berlim foram registrados naquele ano 7.000 suicídios, dos quais quase 4.000 aconteceram no mês de abril. Em seu livro, Huber reúne depoimentos de pessoas que associaram o fim de suas próprias vidas ao fim do nacional-socialismo. Como o professor Johannes Theinert e sua mulher, Hildegard, que começaram a escrever um diário em 1937, um ano após se casarem. O último registro foi datado em 9 de maio de 1945. “Acaba a crise. As armas calam”, anota Hildegard. Naquele mesmo dia, Johannes atirou na mulher e depois em si mesmo. A última entrada do diário encontrado por alguém após sua morte dizia: “Quem se lembrará de nós, quem saberá como acabamos? Essas linhas têm algum sentido?”.

El Pais Brasil


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