terça-feira, 4 de junho de 2013

Filhos do Mal?



Paulo Gleich

Tem se tornado cada vez mais comum escutarmos pais e mães assustados, paralisados ante as agressões que sofrem por parte de seus filhos. Esta agressividade, antes mais frequente no ambiente escolar e entre irmãos, ou seja, em relações mais horizontais, tem invadido a relação com os pais, que reagem aterrorizados com a possibilidade de estarem criando não um filho, e sim um monstro. Reforçam essa percepção a popularizada questão da “falta de limites” das crianças de hoje, bem como o fantasma bem atual do psicopata, que já não mora mais ao lado, e sim dentro de casa.

Estariam as crianças nascendo diferentes? Haveria alguma mudança genética, alguma substância, algum transtorno que estaria tornando-as mais agressivas, ameaçando as relações familiares e, em larga escala, o futuro da humanidade? Como dar conta delas? Exasperados, os pais buscam respostas com livros, especialistas, medicamentos, mas nada parece dar conta do pandemônio que tomou conta das crianças, ao estilo de filmes de terror como Colheita maldita, no qual as crianças de uma pequena cidade assassinam adultos.

Vou tomar outro exemplo do cinema para iniciar essa reflexão: A fita branca, de Michael Haneke. Aos que ainda não assistiram, recomendo ver antes de seguir lendo, para não estragar a surpresa, embora seja esta apenas um elemento que confere suspense à trama. Trata-se também de um filme de terror, este porém bem mais assustador por afastar-se da fantasia paranoica das crianças-demônio e mergulhar nas condições que levaram um grupo de crianças de um vilarejo da Alemanha do início do século passado a cometer atos de perversa e inimaginável crueldade, como efetivamente acabou ocorrendo anos depois, quando já não eram mais crianças, durante os anos do nazismo. No filme, a educação despótica, rigorosa e pautada pela obediência cega que reinava na época, com pouco espaço para manifestações subjetivas das crianças, leva à perpetuação, por parte delas, do sadismo em relação aos diferentes e mais fracos, este porém desprovido do verniz educacional que camuflava o próprio sadismo de seus pais.

Estamos muito distantes dos tempos e da lógica retratada em A fita branca, mas a atualidade do filme está em lembrar-nos do óbvio, que é o que mais precisa ser lembrado, sob pena de ser esquecido ou ignorado: os filhos são frutos dos sintomas e das escolhas de seus pais, bem como da cultura em que vivem. É esse o fato que é recalcado quando se procuram em genes, substâncias, forças do além as explicações para o mal-estar das crianças: a implicação dos pais – e, por extensão, de todos, como sociedade – naquilo que é transmitido culturalmente às crianças para que elas aprendam a ser gente, algo muito mais mutável que nosso código genético.

Não se trata de reproduzir o clichê psicanalítico de que “a culpa é da mãe”, até porque a esta raras vezes falta culpa pelas desventuras de seus rebentos, mas levar a uma reflexão sobre o que se quer, atualmente, para as crianças. Foi-se o tempo em que elas não tinham voz, pelo contrário: sua voz faz-se ouvir muito cedo e deixa-nos perplexos pela precocidade de suas manifestações. Dizem o que querem, queixam-se do que não querem, mexem em computadores e tablets com mais desenvoltura que muitos pais. A relação entre pais e filhos tornou-se mais horizontal, o que garante aos pequenos estatuto de gente muito antes do que acontecia com gerações anteriores – o que é um ganho dos nossos tempos, o diálogo e a convivência substituíram o pátrio poder e a segregação radical entre “coisas de adulto” e “coisas de criança”, como se de raças diferentes se tratasse.

O que, então, está acontecendo para que os pequenos se tornem algozes de seus pais? Examinemos nosso funcionamento “adulto”, uma pista pode estar aí, que é de onde vêm as crianças. Cada vez mais, toleramos menos as frustrações da vida: aprendemos com as maravilhas do mundo moderno que é possível ter o que se quer, quando se quer. Não faltam produtos, lojas e cartões de crédito para evitar que tenhamos que esperar mais do que o necessário pelo que desejamos, caso contrário temos o Procon para proteger nosso sagrado direito de consumir. Ficamos em alas se nossa internet sai do ar, e descarregamos sem culpa nossa raiva e indignação nos atendentes que registram a ocorrência. Lidamos mal com as mazelas do envelhecimento e depositamos na medicina a esperança da cura da morte e seus signos, como o sofrimento, afastando de nós as limitações impostas pelo tempo, pelo acaso e pelas escolhas que fazemos. “Você quer, você pode” é nossa ética, e tudo tem que ser prazeroso; o que não é, não nos serve, e é alvo de nosso desprezo e nossas raivosas queixas, como se tivéssemos direito garantido à plenitude 24 horas por dia.

Freud dizia que uma criança é fruto do narcisismo de seus pais; eles desejam para seu filho aquilo que gostariam de ter sido e tido, mas do qual foram privados por seus pais, que falharam na tarefa. O destino de um filho é ser uma versão melhorada deles mesmos, sem os infortúnios aos quais foram submetidos por injustiça do destino. Fica a pergunta: se somos cada vez mais intolerantes a nossas próprias frustrações, como suportar as de nossos filhos, ensiná-los a tolerarem-nas, a aceitarem resignadamente um “não”, dito tantas vezes da boca pra fora, mas sem real implicação, ou desdito após alguns minutos de choro?

Voltemos à criança que bate na mãe (ou no pai, para poupar a pobre mãe) que a frustra, desatando a fúria agressiva. Crianças são espertas, muito sensíveis a seu entorno porque precisam dar conta de muitas coisas em seus primeiros anos de vida, aqueles em que terão de aprender a serem humanas; no entanto, ainda não têm todas as ferramentas, há uma crueza em seu agir.

Pouco a pouco, aprendem a transformar gritos em palavras, tapas e socos em gestos e fantasias, graças à ajuda de quem as cria para explicar-lhes as coisas do mundo, e para determinar até onde podem ir, e quando é hora de parar. Essa tarefa parental é incompatível com a ética do “você quer, você pode”, pois implica não só em produzir uma frustração, mas desejar que ela se produza, e poder sustentar, pela palavra, esse ato. O temor dos pais de frustrar, alimentado por seu próprio narcisismo intolerante à frustração, pela culpa bem atual de não poder oferecer mais tempo de convívio com os filhos e pela suposição de que há alguém (que não eles) que sim sabe como é a forma “certa” de educar (basta ver, por exemplo, o sucesso da Super Nanny e de livros voltados a essa questão), acaba deixando nas mãos das crianças a escolha do que fazer, e elas o fazem como o sabem: seguindo, da forma mais direta, o caminho do prazer.

O que nossos tempos tão carentes em tradição e certezas anunciam é que não há uma fórmula mágica de como é a educação “correta” de uma criança: é trabalho de cada pai, cada mãe, cada casal, haver-se com o que desejam para seus filhos e com as consequências desse desejo. E desse trabalho não há livro, remédio ou especialista que possa poupá-los.

Paulo Gleich é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Sul21

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