terça-feira, 2 de abril de 2013

Crack, desinformação e sensacionalismo



Escassez de dados sobre consumo de crack no território nacional coloca em xeque estratégias de enfrentamento do problema

André Antunes

“Nós temos que dar para esse problema do crack um tratamento de surto epidêmico. Todo agravo à saúde que apresenta uma variação no número de casos que supera a série histórica, que muda o seu perfil regional, de localização dessa ocorrência e que ultrapassa grupos tradicionais e começa a acometer outros grupos é [considerado uma] epidemia. E esse é conceito que o Ministério da Saúde, o conjunto do governo e a sociedade assumem”.

A frase foi dita pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em uma coletiva de imprensa no final de 2011, durante o lançamento do programa ‘Crack: é possível vencer’, do governo federal.

A ideia de que o Brasil vive uma epidemia de crack serviu de alicerce para a implantação do programa, para o qual foram destinados R$ 4 bilhões, e que trouxe algumas medidas polêmicas para frear o avanço do consumo desta droga pelo país, como a internação compulsória e o apoio às chamadas comunidades terapêuticas (a revista Poli n° 22, de março e abril de 2012, dedicou uma matéria ao programa e seus pontos polêmicos).

Mas não são apenas nas palavras de Padilha que a preocupação com a dita ‘epidemia de crack’ se expressa. Basta, por exemplo, abrir o jornal, de onde brotam manchetes como: ‘Consumo médio de crack é de 1 tonelada por dia e sistema de saúde atende 250 mil usuários por mês’; ‘Epidemia de crack no Brasil lembra os EUA em 1980’; ‘Consumo de crack avança na capital federal’; ‘Usuários de crack na cidade podem chegar a 6 mil’; ‘Crack já chega ao interior do estado’; ‘Avanço do crack: pontos de consumo aumentam’; ‘Brasil é o maior consumidor mundial de crack’; ‘Rascunhos do futuro: epidemia de crack já provoca evasão escolar e até morte de alunos’; ‘Crack ajuda a elevar estatísticas de homicídios no país’; ‘Consumo de crack cresce sem controle no Brasil’. Vale lembrar que todas as matérias foram publicadas nos últimos seis meses.

Mas quanto disso tem embasamento em dados concretos e pesquisas confiáveis e quanto pode ser considerado alarmismo e sensacionalismo, frutos do desconhecimento a respeito da droga?

Quem e quantos são realmente os usuários de crack hoje no país? Pesquisadores da área ouvidos pela Poli alertam para o fato de que os dados com abrangência nacional são esparsos e mesmo os que existem são muitas vezes negligenciados na hora de planejar políticas efetivas para dar conta do problema.

Além disso, especialistas veem no pânico social causado pela enxurrada de notícias e informações desencontradas sobre o crack uma maneira de garantir apoio para medidas que ferem princípios constitucionais e de direitos humanos.

Epidemia?

Sergio Alarcon, psiquiatra e doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), explica que pesquisas de abrangência nacional acerca do consumo de crack existem, mas ressalta: “o problema não é exatamente a inexistência de pesquisas, mas que as pesquisas sobre drogas são antigas ou parciais – como, por exemplo, as baseadas em inquéritos domiciliares – ou então têm metodologias discutíveis – como as que avaliam o crescimento da circulação de uma droga a partir do número de apreensões realizadas pelos aparelhos repressivos”, complementando em seguida: “Falar que estamos vivendo uma epidemia do crack baseado nesses dados é no mínimo leviano – para não dizer absurdo – do ponto de vista científico”.

Além disso, como aponta Marco Aurélio Soares Jorge, professor pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o emprego do termo ‘epidemia’ para falar do abuso de crack no país – além de referendar uma imprecisão estatística – traz para o debate público um preconceito a respeito dos usuários. “A palavra epidemia é péssima, perigosa inclusive, porque dá a ideia de uma coisa contagiosa. Vamos imaginar que eu seja usuário de crack e estou junto de você. Você vai se contagiar e começar a fumar crack? Óbvio que não, mas epidemia é assim. Acredito que falar em epidemia de crack serve até para colocar uma questão que é social como uma doença. E aí os usuários de crack passam a ser vistos como perigosos, pessoas que podem contaminar a sociedade”, critica.

Expansão do crack

Ainda que os levantamentos já realizados sejam parciais e antigos, como apontou Alarcon, a análise de alguns dados presentes neles mostra que, de fato, o consumo de crack vem se expandindo pelo território nacional. Circunscrito inicialmente a São Paulo, onde já no início da década de 1990 foram identificadas cenas de consumo da droga, o crack espalhou-se pelo Brasil, e hoje já é possível encontrá-lo em todo o país. É o que aponta o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, de 2005, pesquisa do Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (Cebrid/Unifesp).

Com base em cerca de 8 mil entrevistas realizadas nas 108 cidades do país com mais de 200 mil habitantes, o levantamento levou em conta tanto as drogas lícitas, como o álcool e o tabaco, quanto as ilícitas, como o crack, a maconha e a cocaína, apresentando uma estimativa do número de pessoas que já haviam feito uso na vida e as que eram dependentes de cada uma destas substâncias, como também um perfil parcial dessas pessoas. Além disso, o levantamento também traz alguns dados sobre a percepção das pessoas a respeito da facilidade de se obterem drogas e de sua periculosidade.

O estudo apontou que 0,7% dos entrevistados – o que corresponde a uma população estimada de 381 mil pessoas – já havia feito uso de crack na vida. Os maiores índices foram observados entre homens na faixa etária de 25 a 34 anos (3,2%) e de 18 a 24 anos (1,1%). No primeiro levantamento do tipo realizado pelo Cebrid, em 2001, o índice de entrevistados que havia feito uso de crack foi 0,4% – uma população estimada de 189 mil pessoas. A maior prevalência também era encontrada entre os homens adultos, mas o índice era menor do que o encontrado em 2005: 1,2% na faixa etária de 25 a 34 anos e 0,9% na faixa de 18 a 24 anos.

De acordo com o levantamento de 2005, a região Sul foi a que teve a maior porcentagem de entrevistados que afirmaram ter consumido crack na vida, 1,1%, seguida pela região Sudeste, com 0,9%, pelo Nordeste, com 0,7% e pelo Centro-Oeste, com 0,3%. Embora não tenha sido identificado consumo de crack na região Norte, o estudo apontou 0,8% de entrevistados que relataram ter feito uso da merla, que, assim como o crack, é derivada da pasta de cocaína, consumida em pedras que são fumadas. O consumo de merla também foi identificado no Centro-Oeste (0,3% dos entrevistados relataram ter feito uso), no Nordeste (0,2%), no Sul (0,2%) e no Sudeste (0,1%).

Para efeito de comparação, a pesquisa de 2005 apontou que a prevalência do consumo na vida de álcool foi de 74,6% dos entrevistados e a de tabaco foi de 44%. O estudo também apontou que 12,3% dos entrevistados eram dependentes de álcool, e, 10,1%, do tabaco. Com exceção do álcool e do tabaco, as drogas lícitas mais consumidas foram os solventes, que tiveram índice de uso na vida de 6,1% e de 0,3% de dependentes; seguidos pelos ansiolíticos, com 5,6% de uso e 0,5% de dependentes, e as drogas estimulantes do apetite, com 4,1% de uso. Entre as drogas ilícitas, a primeira em termos de consumo foi a maconha: 8,8% dos entrevistados afirmaram já ter consumido durante a vida e o índice de dependentes foi de 1,2%. Já a cocaína foi consumida por 2,9% dos entrevistados.

Com base nos dados disponíveis, o professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tarcísio Andrade, questiona o excesso de atenção que o crack vem recebendo do poder público e da grande mídia em detrimento de outras drogas. “O uso de cocaína cheirada ainda é superior ao uso do crack, e maconha então é bastante superior. Mas nós temos falado de crack como se ele fosse prevalente sobre todas as outras drogas”, critica. Em sua opinião, a droga vem sendo usada politicamente como forma de as prefeituras garantirem recursos do programa federal de combate ao crack apoiadas na escassez de dados sobre seu consumo. “Quando o governo anunciou R$ 4 bilhões para o crack, logo em seguida saiu uma pesquisa dizendo que a grande maioria dos municípios tinha problema com seu uso. Da maneira como a nossa política funciona, se a pessoa sabe que tem recurso disponível e você chega à cidade e pergunta se tem problema com o crack, é claro que ele vai dizer que tem”, aponta Tarcisio, fazendo referência a uma pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) que apontava que o crack era um problema em 98% dos 3.950 municípios ouvidos pela pesquisa.

O levantamento foi feito com base em um questionário em que os gestores municipais tinham que responder se a cidade enfrentava ou não problemas relacionados ao consumo de drogas e, em caso de resposta afirmativa, tinham que dizer com qual droga; as únicas alternativas possíveis eram ‘crack’, e ‘outras drogas’. Tarcisio arremata: “Temos um problema com o uso de crack? Temos, mas ele não tem a dimensão que está posta. Por consequência dessa amplificação, desse pânico social, acaba-se fazendo um diagnóstico errado e tomam-se medidas supostamente terapêuticas também equivocadas”. (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz)

Brasil de Fato

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