quarta-feira, 10 de abril de 2013

Clarice Lispector e a armadilha da melancolia



Paulo Gleich


Em 15 de junho de 1968, Clarice Lispector publicou em sua então coluna semanal no Jornal do Brasil uma crônica intitulada Pertencer. No texto, escreve sobre sua sensação de jamais pertencer a nada, a ninguém, e da radical solidão que era sua mais fiel companheira. Também fala do desejo de pertencer:

 “…pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.” 


No início do escrito anuncia que não exporá os motivos que a fizeram sentir-se não pertencendo desde o berço, mas ao final trai sua intenção e narra a história de sua origem, do desejo dos pais que lhe trouxe ao mundo. Viera por uma superstição da gente de sua época, segundo a qual o nascimento de um bebê poderia curar a enfermidade de uma mulher. Sua missão, no entanto, não vingou: a mãe não se curou, e desde então Clarice carregara consigo a marca culposa desse primeiro e retumbante fracasso.

Pertencer cativa pelas palavras de Clarice, a cuja sensibilidade e maestria no uso da linguagem é impossível ser indiferente. Mas também expõe a armadilha na qual o melancólico se coloca, e à qual se agarra como a sua própria vida, porque é ela que lhe dá sentido à vida: o amor que não foi. Mais que um enlutado, que resiste em aceitar a perda de um amor importante, o melancólico não consegue abrir mão de um amor que não existiu, um amor que foi promessa e não se cumpriu, por azar do destino que, se é que existe, não é mais que puro azar.

A solidão do melancólico, que tanto nos comove por tocar em nossa bem-camuflada solidão essencial – todos a experimentamos, já desde que saímos do útero materno – é uma falsa solidão: precisa estar sozinho para poder viver tranquilo seu amor perfeito, um amor idealizado que guarda a sete chaves das mazelas e imperfeições do amor de verdade, aquele que efetivamente acontece entre duas pessoas. Nenhum amor é bom o suficiente para o melancólico, que denuncia a hipocrisia e os arranhões do amor terreno para seguir gozando com seu amor limpo, puro, sem fissuras.

Clarice delata sua posição ao introduzir a história de sua chegada ao mundo: “no entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito”, e narra a fantasia – ou delírio? – que deu lugar a sua chegada. A pretensa beleza de seu mito de origem camufla a onipotente condição na qual se coloca, como aquela que teria o poder de evitar a morte do outro, e seu fracasso é apenas o avesso disso. Carrega essa culpa sem aventar a possibilidade do perdão – a si mesma e a seus pais, pelo desatinado desejo que a gerou -, aferrando-se ao desejo de ter cumprido a missão que aí, sim, a faria pertencer – a seus pais.

O que se esconde nessa fossa melancólica é que, desta forma, sempre pertenceu e segue pertencendo a seus pais: foi fruto de um fracasso deles, mas assim segue sendo deles; sua existência ainda se nutre do que a fez vir ao mundo. O melancólico oculta de si mesmo, com esse giro, o desejo imperioso de seguir sendo o que somos quando viemos ao mundo: objeto de um outro de quem nosso destino depende. Ele jamais está sozinho, pelo contrário, está sempre acompanhado pelo único mestre garantidamente imortal: a morte. Por medo de amar os vivos, ama quem já se foi, e seu desejo de morrer é para finalmente concretizar a perfeição de um amor silencioso, sem ruídos – e sem vida.

Clarice traiu-se mais uma vez nesse texto: no final das contas, ao expressar pelas palavras seu trânsito pelos meandros da não-pertença, acabou pertencendo, com alegria, à literatura brasileira. Assim como encontrou no Brasil um novo berço, estrangeiro a suas origens, fez sua a língua portuguesa e, com sua produção, criou um lugar para si. E é este o desafio que se coloca para todos nós: criar uma morada possível, para não ficar eternamente presos a um berço, que é esplêndido apenas em nossas fantasias.

Sul 21

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