sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Terceirização e trabalho escravo: níveis pandêmicos de precarização

“Não há surpresa em termos chegado a esse momento após 12 anos de gestão petista”, porque quando o PT teve maior influência no Congresso, “leis que facilitam ou promovem a precarização do trabalho e reduzem direitos sociais foram aprovadas”, afirma Vitor Filgueiras à IHU On-Line.


Auditor fiscal do MTE, Filgueiras tem acompanhado a investigação de casos de trabalho escravo no país, especialmente em setores da construção civil, da mineração, da siderurgia, ramos do agronegócio, e informa que dos dez maiores casos de flagrantes relacionados a trabalho escravo em 2014, apurados pelo MTE, “havia trabalhadores terceirizados em oito casos, totalizando 384 trabalhadores contratados dessa forma. Em sete desses flagrantes, todos os trabalhadores eram terceirizados”. De acordo com ele, nos últimos anos, entre 2010 e 2014, o MTE apurou 4.183 casos de trabalhos submetidos à exploração; desse total, “3.382 eram terceirizados, o que equivale a 81% do total de trabalhadores vitimados”.


Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Vitor Filgueiras comenta ainda os efeitos da terceirização caso o PL 4330 seja sancionado e enfatiza que, com a aprovação das MPs 664 e 665, “o governo está efetivamente promovendo uma provável geração de trabalhadores que nunca terá acesso ao seguro-desemprego”. De acordo com ele, “de todos os contratos firmados em 2013, 41,2% foram encerrados antes do fim do ano. A participação de jovens entre esses desligados é 50% superior à participação de jovens entre os trabalhadores que permaneciam empregados no final do ano (27,9% contra 18,7%)”.



Vitor Filgueiras possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e graduação em Economia pela UFBA. Atualmente é auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE.


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como explica a aprovação do PL 4330 na Câmara dos Deputados, depois de 10 anos de tramitação no Congresso? Como chegamos a esse momento, especialmente depois de 12 anos de gestão petista à frente da presidência, com maioria no Congresso?


Vitor Filgueiras – No plano imediato, a aprovação do PL 4330 na Câmara é corolário da iniciativa e empenho do presidente da casa, consumada pela ampla hegemonia dos interesses empresariais entre os deputados, que, quando não financiados, são eles mesmos empresários.


Não há surpresa em termos chegado a esse momento após 12 anos de gestão petista. Durante os últimos 12 anos, quando o PT presidia ou tinha maior influência no Congresso, leis que facilitam ou promovem a precarização do trabalho e reduzem direitos sociais foram aprovadas, como a reforma da previdência, o trabalho avulso fora dos portos e a possibilidade de contratação de empregados sem anotação de CTPS por empregador rural.



É verdade que leis que flagrantemente retiram direitos, a exemplo do chamado “negociado sobre o legislado” e da própria liberalização da terceirização, nunca foram votadas, inclusive porque não tem sido típico das gestões petistas atender explicitamente esse tipo de demanda empresarial em prejuízo dos trabalhadores. As maiores iniciativas precarizadoras dos governos petistas têm operado muito mais via “acordões” (como o selo da cana-de-açúcar e o acordo com as grandes obras para evitar greves) ou por omissão (como o grotesco desmantelamento do Ministério do Trabalho, cujo indicador mais contundente é o fato de haver 500 Auditores Fiscais do Trabalho a menos, hoje, do que havia em 1990, e de estarem vagos — simplesmente esperando pela realização de um concurso — 1000 cargos de Auditores).



Um artigo inserido na Lei da Super-Receita (chamado de Emenda 3), em 2007, que proibiria que empresas fossem multadas pelo Poder Executivo por fraudar contratos de emprego (que são, em geral, de terceirização), foi aprovado na Câmara e no Senado, mas vetado pela Presidência após imensa pressão social.


Contribuições ineficazes


As poucas contribuições progressistas em matéria legislativa dos governos petistas, como a alteração do conceito de trabalho análogo ao escravo, em 2003, são substancialmente ineficazes porque o governo não garante condições mínimas de imposição da norma, vide o número de Auditores Fiscais do Trabalho em atividade.



Em suma, os governos petistas praticamente não promoveram avanços na legislação que versa sobre proteção ao trabalho, e menos ainda contribuíram para fortalecer o campo que propõe limitar o despotismo patronal no nosso capitalismo.



Assim, Eduardo Cunha e sua turma, incluindo os tradicionais representantes dos interesses neoliberais, como o PSDB, e o sindicalismo pelego, encontraram terreno fértil para promover essa agressão contra a classe trabalhadora consubstanciada no PL 4330.



O PT pouquíssimo contribuiu para a melhoria da produção legislativa em termos de proteção ao trabalho nos últimos 12 anos, e ainda conseguiu piorar a capacidade de efetivação das normas pelo Estado.


Mas, sem tirar as responsabilidades do PT, a aprovação do PL 4330 é diretamente derivada da iniciativa do presidente da Câmara. A política do PT na produção legislativa, antes de perder a Câmara, foi contraditória e evitou rasgar direitos explicitamente.



Na atuação legislativa, a relação entre uma guinada claramente à direita do PT nas últimas décadas, que com muita indulgência pode ser caracterizada como contraditória, e o fisiologismo como padrão de vinculação com os demais partidos da “base”, ajuda a entender o atual estado das coisas.


IHU On-Line – A partir da aprovação do PL na Câmara, que análise é possível fazer acerca do que está acontecendo no Brasil, acerca do papel da “esquerda” e sobre a atual situação do mundo do trabalho?



Vitor Filgueiras – O que está acontecendo no Brasil, desde a década de 1990, é uma crescente ofensiva do capital contra o trabalho. Essa ofensiva se dá em todos os planos, dentro e fora do Estado, e vai desde a tentativa ou implementação de mudanças legislativas contra as normas que limitam a exploração do trabalho, até o assédio, intimidação ou uso da violência direta contra os trabalhadores às instituições que existem para proteger minimamente o trabalho.



A ofensiva também ocorre no âmbito discursivo, onde os empresários têm conseguido hegemonizar e tornar senso comum grande parte da retórica que sustenta seus interesses. Desse modo, empresários e seus representantes têm normalmente conseguido pautar e dirigir os debates eles que colocam, ficando os trabalhadores e suas representações na defensiva.



As forças de esquerda, em geral, têm se mantido acuadas, fragmentadas e fragilizadas, e aqueles que se pretendem lideranças contam, quase sempre, com pouca capacidade de mobilização ou mesmo de interlocução com a população trabalhadora.



As reações iniciais que têm ocorrido contra o PL 4330 são alentadoras, mas ainda são muito incipientes.


A situação do chamado mundo do trabalho nas últimas décadas tem se caracterizado, predominantemente, pela crescente precarização do trabalho. Mesmo com a expansão do emprego e da formalização, as condições de trabalho pioraram em vários aspectos, tendo a terceirização contribuído substancialmente para esse processo.



IHU On-Line – Caso o PL 4330 seja aprovado, quais devem ser as perspectivas para o mundo do trabalho no Brasil?



Vitor Filgueiras – Com o texto que foi aprovado, tudo indica que os trabalhadores terceirizados continuarão a ter seus direitos desrespeitados, como já ocorre generalizadamente e é cientificamente provado por inúmeras pesquisas. Pior, a atual situação de precarização, quando não de degradação das condições de trabalho dos trabalhadores terceirizados, vai se legitimar, por conseguinte, será estimulada e aprofundada. Não bastasse, haverá uma nova onda de expansão da terceirização sobre o mercado de trabalho, rebaixando as condições de trabalho e de vida do conjunto dos trabalhadores no país, incluindo desde redução de salários até o aumento das mortes no trabalho.



A primeira onda de precarização ocorreu com a liberalização da terceirização das chamadas atividades-meio, na década de 1990. Agora, com a liberalização total, milhões de trabalhadores serão precarizados com esse artifício de contratação de trabalhadores, cinicamente confundido com divisão social do trabalho. Os trabalhadores continuarão trabalhando para seus verdadeiros empregadores, só que em piores condições e formalmente vinculados a pessoas interpostas.



Se terceirização não fosse instrumento de precarização do trabalho, a previsão de responsabilidade solidária pelos direitos trabalhistas entre empresas contratantes e contratadas, e a isonomia integral de direitos entre os trabalhadores, inclusive de normas coletivas mais favoráveis, seriam as primeiras exigências que as próprias empresas fariam para o texto da lei.



IHU On-Line – Nestes últimos 20 anos em que a terceirização está em pauta, que mudanças ocorreram no mundo trabalho e em que medida elas foram positivas e negativas para o trabalhador? Pode nos dar alguns exemplos?



Vitor Filgueiras – Estamos vivendo décadas de ofensiva patronal contra os trabalhadores. Esse avanço abarca todos os aspectos do chamado mundo do trabalho, e vai desde o processo e condições de trabalho (aumento do ritmo, do estranhamento, do assédio, da quantidade e das formas de adoecimento, reprodução de condições degradantes) até as formas de regulação da exploração e representação dos trabalhadores.



Nas últimas décadas, as práticas ilegais contra o direito do trabalho praticadas pelos empregadores atingiram níveis pandêmicos e abarcam todos os aspectos da relação de emprego.


O quesito saúde e segurança do trabalho talvez seja o caso mais dramático, a começar pelo fato de que os empregadores adotam uma política deliberada de ocultamento dos agravos. A gestão da força de trabalho no Brasil é predominantemente predatória e isso pode ser evidenciado por diversos indicadores.



Uma mudança positiva no mundo do trabalho brasileiro tem sido a recomposição do poder de compra do salário mínimo. Mesmo que ainda longe do ideal, tem sido um mecanismo relevante de distribuição de renda.



Em termos políticos, com exceção de eventos esparsos, como resistências e movimentos pontuais, é difícil enxergar mudanças positivas para os trabalhadores nas últimas décadas. Mesmo as negociações coletivas, que nos últimos anos conseguiram recorrentemente obter aumentos salariais superiores à inflação, estiveram a reboque do incremento do salário mínimo, sem conseguir alcançá-lo.



IHU On-Line – Quais são os indícios de que há uma relação entre terceirização e trabalho escravo? Como caracteriza essa relação?



Vitor Filgueiras – Em 2014, dos dez maiores flagrantes de submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravos no Brasil, apurados pelo Ministério do Trabalho, havia trabalhadores terceirizados em oito casos, totalizando 384 trabalhadores contratados dessa forma. Em sete desses flagrantes, todos os trabalhadores eram terceirizados.



Nos últimos cinco anos (2010 a 2014), somados os dez maiores flagrantes de trabalho análogo ao escravo detectados pelo Ministério do Trabalho em cada ano, 44 envolviam terceirizados. Ou seja, quase 90% desses 50 flagrantes. Nessas ações apurou-se que, dos 4.183 trabalhadores submetidos à exploração criminosa, 3.382 eram terceirizados, o que equivale a 81% do total de trabalhadores vitimados.


Esses dados são explicados pelo fato de que a terceirização potencializa o despotismo patronal, seja tornando os trabalhadores individualmente ainda mais vulneráveis, seja dificultando a imposição de limites aos ditames empresariais por ações coletivas ou por meio das instituições de regulação do direito do trabalho.


IHU On-Line – Em que setores a relação entre terceirização e trabalho escravo é recorrente?



Vitor Filgueiras – Em quase todos os setores onde há flagrantes de trabalho análogo ao escravo, há relação com a terceirização.


Dentre outros, estão entre os setores com flagrantes de trabalhadores terceirizados em condição análoga à de escravos: a construção civil, a mineração, a siderurgia, transporte de valores, a pecuária, a extração de sisal, fast food, vários ramos do chamado agronegócio: sucroalcooleiro, têxtil, fumo, plantação de tomate, pinus, produção de suco de laranja, frigoríficos, fertilizantes.



IHU On-Line – Enquanto auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego, o que tem percebido em relação à terceirização, na prática?



Vitor Filgueiras – Tenho percebido que terceirização não é o que as empresas divulgam e as pessoas normalmente reproduzem. Há inúmeras evidências de que a empresa contratante, longe de transferir a atividade para a terceirizada, continua a ter controle sobre ela. Esse controle pode ocorrer de diversas formas e por meio de inúmeros instrumentos, estando na própria raiz da terceirização nos moldes do fenômeno hoje conhecido. Basta lembrar que a própria empresa que deu nome ao toyotismo era proprietária das pessoas jurídicas interpostas.



Terceirização é uma estratégia de gestão da força de trabalho por um tomador de serviços.


Ela consiste no uso de um ente interposto como instrumento de gestão da sua própria força de trabalho.



O trabalhador terceirizado é parte do processo de acumulação do tomador do serviço (seja ele considerado empregador ou não). É o tomador que gere, à sua conveniência, com os instrumentos que calcular pertinentes, o processo de produção e trabalho da atividade realizada pelos terceirizados.



IHU On-Line – As MPs 664 e 665 têm gerado polêmicas entre aqueles que apoiam e os que são contrários. Qual sua avaliação? Em que aspectos elas são positivas e negativas para os trabalhadores?



Vitor Filgueiras – Pelo que li, especialmente da MP 665, que versa sobre concessão do seguro-desemprego, são medidas negativas para os trabalhadores. Na MP 665 consta o aumento do tempo mínimo de vínculo de emprego formal necessário para o trabalhador dispensado sem justa causa ter direito a requerer alguma parcela de seguro-desemprego.



Objetivamente, foi retirado o direito trabalhista de receber uma compensação pecuniária durante a procura de outro emprego, de todos aqueles que forem dispensados com mais de seis meses de vínculo de emprego, mas com menos de 18 meses trabalhados num período de dois anos (num primeiro pedido, e menos de 12 meses num intervalo de 16, numa segunda requisição).


O que o governo está efetivamente promovendo é uma provável geração de trabalhadores que nunca terá acesso ao seguro-desemprego. Do todos os contratos firmados em 2013, 41,2% foram encerrados antes do fim do ano. A participação de jovens entre esses desligados é 50% superior à participação de jovens entre os trabalhadores que permaneciam empregados no final do ano (27,9% contra 18,7%).


Mais de 2 milhões de trabalhadores que acionaram o Seguro em 2014 não teriam acesso ao benefício após a MP 665, conforme anunciou o próprio Ministério do Trabalho. Para um primeiro pedido, simplesmente metade dos trabalhadores requerentes não teria direito ao seguro-desemprego.


Se a MP for mantida, provavelmente grande parte dos trabalhadores que entra agora não completará 18 meses nos moldes exigidos e nunca terá acesso ao Seguro, recrudescendo sua vulnerabilidade e precarização, em benefício de um padrão de gestão da força de trabalho predatório e com limites cada vez mais improváveis.


IHU On-Line – O que seria um projeto alternativo à terceirização?



Vitor Filgueiras – Se tivesse que passar pelo Congresso a regulamentação da terceirização (o que não necessariamente precisaria ser feito), esta deveria ser no sentido de proibir a contratação de trabalhadores por meio de figura interposta, seja lá como se denominar o intermediário. Ou seja, a terceirização deveria ser proibida.


Isso não tem nada a ver com proibir a divisão social do trabalho entre verdadeiras empresas, que sempre existiu e é inerente ao capitalismo. Terceirização não é divisão do trabalho (uma empresa distribui energia elétrica, outra produz carros, etc.), mas assim é deliberadamente confundida por aqueles que defendem a terceirização, e desse modo argumentam sua inexorabilidade.


Ainda sobre um projeto alternativo, nos casos em que a relação entre empresas é duvidosa, ou seja, quando não está claro se é um caso de gestão da força de trabalho intermediada ou realmente relação entre empresas efetivamente autônomas e verdadeiras interagindo fora do mercado de trabalho, seria aplicada solidariedade ampla entre as partes, isonomia e norma mais favorável para todos os trabalhadores envolvidos.



IHU On-Line – Quando surgiu a CLT, teóricos que estudavam o mundo do trabalho a criticavam na tentativa de ampliar direitos e reduzir a jornada. Como entender essa total reversão nos dias de hoje, em que a defesa da CLT parece ser a única alternativa para os trabalhadores? Nesse sentido, como vê as críticas que foram feitas à CLT à época? Essas críticas ainda são válidas ou a CLT se transformou, de fato, no instrumento de garantia de direitos dos trabalhadores?



Vitor Filgueiras – A CLT, em sua origem, tinha diferentes aspectos. Por um lado, previa direitos aos trabalhadores, como limitação de jornadas e períodos de descanso, que restringiam o poder patronal. Por outro lado, a CLT previa o controle e repressão dos trabalhadores e das suas organizações coletivas.



A relação estreita entre direitos e formas de controle das organizações dos trabalhadores estava no fato de que apenas os trabalhadores sindicalizados teriam acesso aos direitos, e apenas quando o sindicato fosse reconhecido pelo Estado.


A despeito de esses dois aspectos integrarem um projeto maior, liderado por Vargas, de padrão de regulação das classes sociais no Brasil, eles têm conteúdos diferentes. Foi especialmente sobre a legislação sindical prevista na CLT, e seu controle sobre as organizações dos trabalhadores, que tradicionalmente repousaram e até hoje se direcionam as críticas dos agentes mais progressistas.



A CLT mudou muito com a Constituição de 1988, que não recepcionou grande parte dos artigos que versavam sobre organização sindical. A Estrutura sindical no Brasil é extremamente problemática, não dá para resumir o debate em poucas linhas.


Quanto aos direitos dos trabalhadores previstos na CLT, ou em qualquer outro diploma que imponha limites ao arbítrio patronal, serão sempre essenciais para limitar o potencial destrutivo do assalariamento enquanto houver capitalismo.


Fonte: IHU On-Line
Entrevistadora: Patricia Fachin
Data original da publicação: 23/04/2015

Dmtemdebate

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