terça-feira, 8 de agosto de 2017

Vitória dos direitos humanos

Dalmo de Abreu Dallari *

Uma recente decisão do Senado dos Estados Unidos tem grande importância em termos de efetivação de uma ordem social justa e democrática, merecendo por isso ampla divulgação. Tal decisão consistiu na rejeição de projeto proposto pelo Presidente da República, Donald Trump, por meio do qual o Chefe do Executivo pretendia revogar uma lei sancionada por seu antecessor, Barack Obama, que alterou o sistema de saúde com o objetivo de proporcionar às camadas mais pobres da população o acesso aos direitos sociais na área da saúde. A rejeição do projeto anti-direitos humanos proposto e fortemente defendido por Trump e seus seguidores, representa, por sua significação social, uma derrota dos egoístas adoradores do dinheiro e deixa evidente que o poder econômico não assegura necessariamente o domínio absoluto dos meios de governo. 


Um aspecto de especial relevância da referida decisão é a demonstração de que a pressão firme e constante, por meios pacíficos, para que os mandatários do povo assegurem a prevalência dos direitos humanos consagrados em documentos internacionais e nas Constituições,pode ser extremamente eficiente e produzir resultados concretos, superando as fortes resistências. Por isso, por seus resultados práticos, mas também por seu efeito estimulante e conscientizador, é importante divulgar essa vitória dos direitos humanos.



Para avaliação do significado da decisão acima referida, é importante relembrar que o ex-Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, fortemente influenciado por objetivos humanistas, criou e implantou, por via legal, um programa voltado para a efetivação dos direitos sociais, programa que na linguagem corrente foi intitulado de “Obamacare” e que tem por objetivo a garantia do acesso aos direitos sociais da área da saúde às camadas mais pobres da população. Esse programa foi legalmente implantado por meio de lei federal, aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Presidente Obama em 23 de Março de 2010. Essa lei introduziu mudanças no sistema de saúde, estabelecendo o controle dos preços dos planos privados de saúde e, além disso, expandindo os planos públicos de seguro-saúde, de tal modo a possibilitar a proteção dos setores sociais mais pobres. Tal mudança garantiu o acesso aos serviços de saúde, incluindo assistência médica e internação quando necessário, para alguns milhões de pessoas que não tinham tal possibilidade.



Esse foi um passo altamente positivo em termos de correção de uma injustiça social e garantia do acesso aos direitos fundamentais a pessoas até então marginalizadas. Entretanto, apesar de ser essencialmente humanista e democratizante, o “Obamacare” deu motivo a uma revolta indignada de pessoas das camadas mais ricas da população, que consideraram absurdo que o poder público assumisse esses custos, que serão cobertos com recursos resultantes dos tributos pagos pelos contribuintes. Não há dúvida de que essa reação essencialmente egoísta, por acharem injusto que uma parte de seus ganhos econômicos fosse entregue compulsoriamente ao governo para atendimento de direitos sociais, pelos quais não têm o mínimo respeito, contribuiu para que Donald Trump fosse eleito Presidente da República.



Transpondo isso para a realidade brasileira, pode-se afirmar, pela observação e análise das características dos conflitos sociais relacionados com a implantação dos direitos sociais, que também no Brasil existe uma camada social sem noção de ética e sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos humanos fundamentais internacionalmente proclamados e expressamente consagrados na Constituição brasileira de 1988. Como já tem sido registrado por analistas da realidade social politicamente independentes, essa atitude é reveladora de que existe muito de verdade numa afirmação de notáveis filósofos e juristas dos séculos dezessete e dezoito que acrescentaram um dado essencial para a análise dos comportamentos humanos em sociedade. Anteriormente, grandes pensadores da Grécia antiga, com destaque para Aristóteles, registraram a existência de um “impulso associativo natural” dos seres humanos, que os leva a buscar a convivência com os semelhantes para satisfação de várias de suas necessidades essenciais, de natureza material, intelectual e espiritual.



Reafirmando essas convicções, mas acrescentando um dado também essencial, apreendido na observação e análise dos comportamentos humanos em sociedade, assinalaram, Kant e outros notáveis pensadores, que, assim como existe no ser humano um impulso associativo natural, também existe, com intensidade variável de um para outro indivíduo mas presente em todos, um “egoísmo essencial”, que pode ser contido ou ter suas conseqüências práticas diminuídas se houver a conscientização das pessoas quanto a esse núcleo negativo da personalidade humana e o risco de suas más conseqüências. A existência desse impulso egoísta fica evidente na observação do comportamento dos que, com desprezo pela pessoa humana e sem admitir a igualdade essencial da dignidade e dos direitos humanos fundamentais, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, colocam acima de tudo os seus interesses e a satisfação de suas ambições. E isso se torna mais grave quando tais indivíduos sofrem o deslumbramento das vantagens e dos privilégios sociais que decorrem da superioridade quanto às riquezas materiais.



Por tudo o que acaba de ser exposto e, em termos práticos da atualidade, por ser uma valiosa demonstração de que é possível assegurar, por meios pacíficos e institucionais, a prevalência dos direitos humanos, inclusive dos direitos sociais, a derrota sofrida pelo Presidente Donald Trump no Senado dos Estados Unidos foi uma vitória dos direitos humanos. Essa decisão deve ser conhecida e amplamente divulgada, para ser utilizada como exemplo e estímulo para iniciativas e decisões que assegurem a efetividade dos direitos humanos. Assim estarão sendo corrigidas graves injustiças sociais e se estará caminhando no sentido da universalização dos direitos humanos.



* jurista




Jornal do Brasil








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