terça-feira, 8 de agosto de 2017

Savonarola e o destino do inquisidor

Nirlando Beirão

O abade dominicano acabou fritado na mesma fogueira em que assava os “hereges” e “corruptos”

Mesmo depois de punido por uma morte infame, o abade dominicano Girolamo Savonarola foi tido na conta de santo por muitos cidadãos de Florença. Fim do século XV, 1498: o destino do lunático fora selado.

Mas, antes, Savonarola incendiara a têmpera da comuna com o combate sem trégua aos “ímpios e pecadores” e com a doutrina de higienização ética que expelisse do convívio social – de preferência de forma exemplarmente violenta – os dissidentes do establishment.



Teve legiões de seguidores apalermados – e assustados – e virou a seu favor a opinião pública de uma Florença, no entanto, culta e sofisticada. Perseguidor implacável dos pretensos hereges, foi condenado por heresia.



Inquisidores de todas as épocas são terroristas por vocação, disseminam o pânico e proclamam sentenças em nome de uma primazia moral fundada no delírio sadomasoquista de uma missão purgativa ditada pelo Céu – em certos casos, pelo “mercado”.



São gente, em geral, muito doente da cabeça e, quando não, passageiros da hipocrisia e do farisaísmo. Jogam para a plateia, até que a plateia, de tanto manipular o exibicionismo deles, se cansa do jogo. Antes mesmo do definitivo julgamento da História, costumam dar-se mal.



Savonarola é o mais notável chefe de uma escola que, ao longo dos séculos, aflorou aqui em ali, em Salem, Massachusetts, perseguindo bruxas, ou na Alemanha nazista, dizimando os judeus; em Washington, DC, com o senador Joe McCarthy, caçando comunistas nas telas e debaixo da cama, ou na República curitibana da Lava Jato, fanatizada pelos holofotes da mídia reacionária.



Procedia Savonarola, precursor de Moro e Dallagnol, de uma família tradicional de Ferrara, na região da Emilia Romagna. Foi educado nas manhas da escolástica e esmerou-se nas contorções enganosas do silogismo.



Francesco Guicciardini, seu contemporâneo, anota em História de Florença sua “retórica eloquente”. Savonarola era, de fato, impetuoso e suas aparições públicas logo revelaram um extremista. Tinha sangue nos olhos. Soube aproveitar o vácuo político a seu favor.



Lorenzo di Medici, o Magnífico, morrera. O filho e sucessor, Piero, revelou-se um desastre. O exército francês do rei Carlos VIII cruzara os Alpes e se preparava para invadir Florença. Os florentinos entraram em pânico.



“Em tais circunstâncias”, escreveu o historiador Michael White, de Oxford, especialista em Renascimento, “é frequente que um indivíduo com carisma extraordinário, uma mensagem forte e alguma inteligência possa segurar as rédeas do poder e se levantar mais alto e mais rápido que qualquer um poderia ter sonhado em tempos mais simples e calmos”.



Florença era uma república desde 1115. Uma república da elite, mas, ainda assim, com leves concessões de representação popular. Setenta mil habitantes haviam sobrevivido à devastação da Peste Negra, no fim do século XIV.



“Existe liberdade igual para todos”, exagerou, em 1428, Leonardo Bruni, um entusiasta de Florença. “A esperança de ter altos cargos e de ascender é a mesma para todos.” Era, de todo modo, a mais liberal das cidades-Estado da Península, com a possível exceção de Veneza.



A democracia não estava na agenda afetiva de um homem que deixou de se ver como político e passou a pregar como se fosse um profeta, imprecando contra a devassidão moral, do alto do balcão do Palazzo Vecchio, para multidões aglomeradas na Piazza della Signoria, dispostos, tanto os ricos quanto o populacho, a embarcar na fantasia de um regime teocrático intermediado por Savonarola.



Ele falava em dialeto toscano, o que ampliava o apelo de sua oratória inflamada. Especialmente depois de ter sido chamado às falas pelo papa Alexandre VI, em 1495, o frade passou a guiar suas decisões terrenas por visões sobrenaturais – que ele anotava minuciosamente em seu Compendium Revelationum.



Convocado em Roma, recusou-se a ir a acabou por romper com o Vaticano. Anunciou que Florença era “a nova Jerusalém”, “a cidade de Cristo”, centro de uma cristandade purgada de seus pecados.



Fetiche de todo bom inquisidor, logo Savonarola acendeu sua fogueira. Ali, passou a queimar obras de arte e objetos considerados produtos da vaidade humana, luxo desnecessário ou peças imorais.



Jogou nas brasas obras clássicas de Dante, Boccaccio e Ovídio. Não custou muito para condenar à fogueira todo aquele que insurgisse contra sua ditadura alucinada. Artistas, escritores e livres-pensadores sofreram na pele o desatino da fé.



Pouco a pouco, os florentinos começaram a pressentir que haviam sido feitos do patos e aos entrechoques entre as tradicionais facções do poder (Bianchi, Bigi, Arrabiati, Frateschi, Piagnoni) veio se juntar a progressiva ofensiva movida pelo ofendido papa Alexandre VI. Em maio de 1497, Savonarola foi excomungado.



Mesmo num Estado laico como Florença, esse tipo de ordálio traz consequências. O que começara como promessa havia se degenerado em horrível distorção de um governo civilizado. A intolerância e a injustiça têm, às vezes, pernas curtas.



A danação de Savonarola aguçou-se quando seu aliado mais influente, o rei francês Carlos VIII, com o qual havia negociado uma trégua, morreu subitamente. O sacerdote celerado logo iria saborear seu próprio veneno.



Foi preso e torturado, confessou que forjara as tais “visões” e, juntamente com dois seguidores próximos, igualmente frades, foi enforcado e depois assado na Piazza della Signoria, em 23 de maio de 1498, na mesma grelha em que assara seus desafetos.



Florença começou a cicatrizar as feridas e, com o necessário mea-culpa, se refazer da ressaca, com caras novas e propósitos arejados. Entrava em cena na vida pública, como secretário da Segunda Chancelaria, um jovem chamado Nicolau Maquiavel.



Sai Savonarola, entra Maquiavel – difícil engolir sem amargura a insuportável superioridade intelectual dessa Florença, quando, em outros cenários de brutalidade inquisitória, se sai Sergio Moro entra Gilmar Mendes.





Carta Capital

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