terça-feira, 16 de maio de 2017

A esfinge midiática que devorou o juiz Sérgio Moro

O depoimento prestado pelo ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro trouxe à tona um debate propositalmente adormecido acerca da relação entre a mídia e o exercício do poder punitivo estatal. Lula lembrou que Moro defendeu em artigo doutrinário sobre a operação “mãos limpas” (mani pulite) que a imprensa deve ser politicamente instrumentalizada pela justiça para atingir seus objetivos persecutórios, sem o qual seria impossível combater a criminalidade organizada.



A performance dos atores jurídicos envolvidos na operação Lava Jato, o clímax e anticlímax de um enredo novelesco, os sobressaltos e as reviravoltas transmitidos em tempo real pelas tevês a reter a atenção de um público ávido por justiça a qualquer preço, ou algo assim, indica que a teoria defendida pelo magistrado pode ter encontrado alguma correspondência na prática. É preciso, no entanto, investigar o impacto dessa relação em um sistema que sustenta proteger direitos e garantias fundamentais, além da natureza, extensão e morfologia dessa relação para se saber quem efetivamente é meio e quem é comando.



Na sociedade de massa e da informação convém ter presente que a mídia atua como árbitro do acesso à existência social e política, validando determinadas posições e desqualificando outras, em larga medida fornecendo “a imagem do mundo ao homem comum” (BERTRAND).



Organizada em conglomerados empresariais (e familiares no caso brasileiro), seu objetivo central é a manutenção da estrutura dos processos de acumulação capitalista por meio da divisão social do trabalho. Logo, a mídia não se apresenta como um elemento imparcial nesse processo de apuração de condutas e imputações, como deveria ser o órgão estatal de solução de conflitos, já que apoiar ou rechaçar determinados agentes políticos obedece a uma lógica diversa da que deveria nortear a ação estatal fundada na noção do bem comum.



Por mais que se queira, instrumentalizar essa poderosa máquina construtora do aparato simbólico para atingir determinadas finalidades não parece ser algo trivial. Atiçar a fera é bulir com o imponderável, pois o único comando que o mastodonte obedece é o que atende ao escopo de sua existência, ou seja, a manutenção do status quo e do ecossistema que alimenta o seu poder.



Moro que de bobo não tem nada já se deu conta disso, prisioneiro que de bom grado se tornou desse enredo. Se pretendia tosquiar com a doutrina colada dos italianos da mani pulite, certo é que voltou tosquiado pela força dos fatos, jamais se opondo aos termos do acordo.



Em um mundo de imagens e de reality show, muitas vezes a fama e o reconhecimento social são mais importantes que a riqueza material. E no fim das contas, posar de herói é sempre melhor do que de vilão, mesmo que a contrapartida envolva o despojar-se do munus de julgador e a auto-conversão em operador autômato de discursos preestabelecidos segundo interesses hegemônicos.



Entabula-se, então, uma relação real e distante da idealizada inicialmente entre juiz e mídia. Esta lhe concede o efeito celebridade e uma popularidade efêmera. Aquele o ajuste de contas com os desviantes, os inimigos públicos selecionados pelos meios de comunicação, tudo sob a chancela do poder estatal que deveria ser imparcial e tributário do devido processo legal, o qual, assim como os demais direitos e garantias fundamentais, serve apenas como referência retórica.



No fundo, trata-se de uma privatização ad hoc da função jurisdicional. Os julgamentos não são apenas na, mas, sobretudo pela mídia. O juiz que parece todo poderoso, na verdade, é fraco e impotente, teleguiado por interesses que pouco tem a ver com as coisas da justiça assentada em um sistema de normas escalonadas preestabelecidas.



Ao final de seu depoimento, Lula disse que se Moro não o condenasse seria devorado por aqueles que hoje o apoiam. Ao fazê-lo, o ex-presidente expôs as vísceras de um sistema carcomido que nada tem a ver com a Justiça, exceto o mise en scène. De toda aquela pantomima, o que se viu ao final foi um juiz guarnecido por tropas, holofotes e microfones, mas acuado pelos valores elementares da civilização.



Yuri Carajelescov é mestre e doutor em Direito pela USP.

Justificando


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...