terça-feira, 26 de abril de 2016

Justiça tem de completar sua democratização


O Judiciário foi menos condenado por seu papel na ditadura militar do que o Executivo e o Legislativo. A Justiça foi poupada do "juízo moral da democratização", apesar de ter dado fachada legal ao regime autoritário. Tal situação se reflete em decisões questionáveis na atual crise.

O artigo é de Daniel Vargas, doutor em direito pela Universidade de Harvard e professor da FGV Direito Rio, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 17-04-2016.

Eis o artigo.

Na década de 1980, o raio democratizante condenou quase todas as instituições vigentes no país: enterrou a Constituição de 1967-9, escrutinou o Legislativo corrompido e retirou as lideranças militares à frente do Executivo. Todos foram declarados "culpados" pelos abusos cometidos durante o regime militar e substituídos nos anos seguintes. No entanto poupamos o Judiciário e o Supremo Tribunal Federal de qualquer escrutínio público.


Fingimos, para nós mesmos, que as arbitrariedades que vivemos no passado foram erros morais, políticos ou sociais, mas não jurídicos –quando, na verdade, tudo o que a ditadura fez foi aprovado em leis. E distribuímos o peso da responsabilidade pelos erros do passado sobre os ombros do Legislativo e do Executivo.

O pecado original de nossa democracia foi realizar a transição política da ditadura para a democracia, mas não a jurídica. O principal símbolo dessa falha foi entregar nas mãos de 11 ministros do Supremo indicados pelo velho regime militar, e por anos comprometidos com ele, a mais nobre tarefa de dar a palavra final sobre os rumos do regime nascente.

Quis o destino que o futuro da democracia brasileira hoje estivesse, em boa parte, nas mãos justamente daquele Poder que, na década de 1980, foi poupado do juízo moral da democratização. Ontem cometemos o grave pecado de não escrutinar a Justiça e sua forma de pensamento e de ação. Hoje ela tem papel decisivo de influência do nosso futuro.

Consequências

Quais as consequências daquele pecado original para o nosso sistema jurídico? Há várias, ainda por se examinar. Mas duas são muito claras.

A primeira é que o velho Supremo tratou de "degradar" a força normativa da nova Constituição. Por anos, direitos sociais foram interpretados como meras diretrizes de governo, o mandado de injunção sofreu uma espécie de "suspensão" constitucional, e impulsos jurídicos inovadores, originários da base do sistema de Justiça, foram neutralizados pela corte. Pelas mãos do velho Supremo, preconceitos da ditadura sobreviveram firmes e fortes.

A segunda consequência é que a Justiça brasileira nunca desenvolveu uma autoconsciência sobre as exigências de sua imparcialidade.

Na ditadura, a "força" do Judiciário estava fora dele, concentrada na imagem do ditador. Na democracia, a "força" do Judiciário está nele próprio, nos argumentos e posturas que adota. Ninguém presume que uma decisão, pelo simples fato de ser proferida por juiz competente, seja automaticamente desejável ou correta, ainda que seja cumprida. Hoje já não basta decidir, é preciso saber liderar, comportar-se como árbitro imparcial e fundamentar suas escolhas com profundidade.

Em democracias avançadas, para limitar ou justificar democraticamente as escolhas judiciais, vários métodos de decisão surgiram ao longo do século 20. No Brasil, contudo, ainda prevalece a "técnica do avestruz", muito conveniente durante o regime militar.

Com frequência, os magistrados decidem como querem, invocam um princípio ou regra abstrata para fundamentar sua visão e depois se retraem, como quem diz: "Eu não fiz escolha alguma". Em vez de enfrentar o problema, fogem dele, como se ainda estivessem na ditadura e, por sobrevivência ou covardia, devessem evitar a todo custo revelar suas opções.

Episódios recentes ilustram várias modalidades de escolhas não reveladas por nossos magistrados.

As que têm mais perturbado são as do tipo "implícito". Cármen Lúcia e Dias Toffoli, por exemplo, ao afirmarem publicamente que impeachment não é golpe, pois está previsto na Constituição, abusam da retórica para escolher, implicitamente, oferecer suporte ao movimento político de destituição da presidente Dilma Rousseff.

Moro e a Lava Jato, ao decidirem avançar as investigações contra Lula, escolheram implicitamente não investigar representantes da oposição, também citados nas delações. No mesmo sentido, o Supremo suspendeu a posse de Lula na Casa Civil, embora seja ele apenas investigado, mas decide implicitamente preservar Eduardo Cunha, réu em processo criminal, à frente da Presidência da Câmara dos Deputados.

Ainda que, individualmente, cada uma das decisões pareça legal, a verdade é que, no seu conjunto, essas posições trazem uma enorme carga de parcialidade.

A renovação completa da composição do Supremo Tribunal Federal, após a aposentadoria do último ministro indicado pelo regime militar, resolveu só parte das questões apresentadas – principalmente, teve efeito sobre a primeira consequência, a desidratação normativa da Constituição de 1988. Ao longo dos anos, o Supremo gradualmente reverteu sua jurisprudência para cumprir o que, fosse ou não de nosso agrado, o constituinte comandava.

Mas a segunda e principal consequência – a afirmação da autonomia do direito e de sua imparcialidade – nunca chegou a se desenvolver plenamente na cultura jurídica. Ainda preservamos, hoje como na ditadura, a mesma estratégia que a Justiça usava para se fingir de inocente – a suposta obediência à lei.

A única diferença é que, no passado, a Justiça fingia não ter escolha, porque temia o Executivo. Era submissa e tímida. Hoje, a submissão e a timidez desapareceram, mas a Justiça ainda finge não ter escolha, de modo a camuflar suas próprias preferências. O Judiciário deixou de se comportar como servo do ditador para se comportar da maneira como bem entende, sem qualquer limite ou freio.

Vivemos presos a uma espécie de infância moral: como uma criança que brinca de Super-Homem e pensa que o mundo todo a sua volta acredita em sua fantasia. Do mesmo modo, parte da Justiça age como se todos acreditassem, ou devessem acreditar, em sua decisão como sempre imparcial.

É possível que a Justiça se redima? A princípio, sim.

Para isso, os líderes do sistema de Justiça deveriam começar fazendo todos os esforços para retirar do ar o cheiro de "dois pesos, duas medidas" que marcou o processo de investigação contra um partido, personalizando muito do que é estrutural.

Os membros do Judiciário devem conter os arroubos de voluntarismo e messianismo, que enaltecem biografias, e não instituições. Devem cuidar com a máxima atenção do impacto político de seus posicionamentos e suas decisões, especialmente as implícitas. Devem fundamentar, de forma transparente e rigorosa, suas escolhas e os métodos em que se basearam para fazê-las. Devem fazer da discrição e da profundidade suas maiores conselheiras. E, a esta altura do campeonato, deverão contar com o apoio da sorte.

É possível, contudo, que os esforços não deem certo.

A principal razão para isso é que nossos líderes na Justiça não parecem ser tão virtuosos – ou, até o momento, tendem a agir mais como torcedores do que como estadistas seguros de si. Se falharem, fica a lição: a transformação de uma democracia sem a transformação do direito, do seu pensamento e de suas prática, pode ter vida breve.

Unisinos


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