quinta-feira, 1 de outubro de 2015

11 contos exemplares


Ítalo Calvino
Rodrigo Gurgel.

Separei hoje 11 contos exemplares. Talvez não para todos — mas para mim, com absoluta certeza. Não são exemplos geniais. Alguns assemelham-se àqueles doces da infância, organizados com certa displicência no balcão do confeiteiro e que não despertam nossa gula — mas quando decidimos experimentá-los, seu sabor explode na boca, a sensação de reconforto inunda nosso corpo. Pouco importa se, do ponto de vista de alguns colegas, podem ser exemplos secundários, pois cada um deles me concedeu autêntico prazer.



1. Começo pelos italianos. Perdoem-me por não citar Pirandello. Mas um escritor menor, Camillo Boito, deixou algumas pequenas obras-primas. Dentre elas, “Senso”, que Luchino Visconti transformou no filme Sedução da carne. A narradora, uma condessa fútil, escreve sobre a paixão que viveu no passado. Temendo a velhice que se aproxima, ela nos oferece um estudo sobre ética, vaidade e orgulho — com final surpreendente.


2. O autor de O Leopardo, Giuseppe Tomasi di Lampedusa, escreveu “A sereia”, história de amor vivida, na juventude, por Rosario La Ciura, catedrático de literatura grega. É o encontro com o prodígio, mas pleno de volúpia e paixão. Lampedusa nos introduz em sua história por meio de gestos que poderiam ser banais, mas que se transformam na prefiguração do encontro que selará a vida de La Ciura: “Os ouriços quebrados mostravam suas carnes feridas, sangüíneas, divididas de modo esquisito. Nunca havia percebido antes, mas após as extravagantes comparações do senador, pareciam-me realmente uma seção feita em sabe-se lá quais delicados órgãos femininos”.


3. e 4. As frases de Carlo Emilio Gadda formam círculos concêntricos que se fecham sobre os personagens. Ele é o mestre das digressões e da experimentação dialetal, mas nunca a ponto de se tornar ilegível. Introduziu, sem exageros, a linguagem popular em seus textos — ou seja, não é, como cansamos de ver na literatura contemporânea brasileira, um populista. Tem dois ótimos romances: Aquela confusão louca na Via Merulana e O conhecimento da dor. Entre os contos, escolho “A cinza das batalhas”, para os leitores que desejarem conhecer sua veia humorística e a agilidade incrível dos diálogos, e “A mãe” — originalmente, um capítulo de O conhecimento da dor —, cujos temas são caros ao escritor: a solidão, a ciência que nada explica e nunca consola, e o tempo, “ligeiro persuasor de qualquer renúncia”.


5. Os amores difíceis é a coletânea de narrativas de Italo Calvino que mais aprecio. Mas há um conto que resume suas qualidades: “Um general na biblioteca”. Uso-o, inclusive, em meus cursos. Humor, ironia, crítica aos regimes despóticos e insuperável amor pela leitura: tudo pode ser encontrado nessa narrativa de aparência leve, mas que esconde fina sabedoria, representada pelo senhor Crispino, silencioso personagem, cujo poder corruptor se revela lentamente.


6. e 7. Passo aos brasileiros. Os leitores do meu Esquecidos & Superestimados sabem que admiro Simões Lopes Neto. Em Lendas do Sul, ele superou o mero registro da oralidade e recriou as narrativas, concedendo-lhes fantasmagoria própria. Aprimorar o enredo, acrescentando lirismo ou facetas heróicas onde, antes, havia apenas uma exposição plana, pueril, não é tarefa simples. E Simões o faz numa linguagem que renova a cadência e a magia do mito. Em “O negrinho do pastoreio”, vejam, para ficar num só exemplo, como a epizeuxe enfatiza os sofrimentos do escravo e amplia nossa compaixão. Quanto ao “A Mboitatá”, o narrador que se desdiz não apenas intensifica o clima de mistério, mas dilata deliciosamente a história, enrodilhando o leitor no rebolear da cobra que devora olhos.


8. O que menos me interessa em “O poço”, de Mário de Andrade, são as relações de mando entre Joaquim Prestes e seus empregados, ou a cobiça incontrolável desse latifundiário, realmente compulsiva, que o narrador apresenta num crescendo bem estruturado, até a explosão do último parágrafo. O que me seduz nesse conto é a linguagem. Dizer que os empregados, assim que o patrão se aproxima, levantam-se “machucando chapéu na mão” revela, com surpreendente economia de recursos, toda uma complexa gestualidade, impregnada de subserviência. Outras expressões poderiam tornar visível a neblina que sobe do rio, mas a escolha de Mário é perfeita: “o arminho sujo da névoa”. Um dos empregados gira com desespero o sarilho (espécie de cilindro no qual se enrola uma corda), para trazer o irmão de saúde frágil, que trabalha no fundo do poço, de volta à superfície, e sua extrema dedicação torna-se visível quando o narrador diz que ele usa “músculos de amor”. À medida que o fazendeiro se desumaniza, os empregados também sabem, se necessário, adular: “Acabou inventando um jeito humilhante de disfarçar a culpa inexistente, botando um pouco de felicidade no dono”. Mário de Andrade domina inúmeros recursos. A cena em que Antônio — o rapaz de saúde frágil — sobe, a última vez, do poço, enregelado e à beira da estafa, guarda raro poder descritivo: “Levou as mãos descontroladas à boca, na intenção de animar os beiços mortos. Mas não podia limitar os gestos mais, tal o tremor. Os dedos dele tropeçavam nas narinas, se enfiavam pela boca, o movimento pretendido de fricção se alargava demais e a mão se quebrava no queixo”.


9. Dez anos antes de Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa publicou Sagarana, coletânea de contos que ainda impressiona. Na juventude, se me perguntassem qual minha história preferida, eu ficaria entre “Conversa de bois” e “A hora e a vez de Augusto Matraga”. Hoje gosto mais de “Sarapalha”. A malária que frustra todas as expectativas, aquele mundo à parte — “o povoado fechou-se em seus restos, que nem o coscorão cinzento de uma tribo de marimbondos estéreis” —, no qual a natureza irrompe sem controle, onde os insetos salmodiam e os passopretos “sobem, de escantilhão, para a copa das árvores, como um borrifo de tinteiro” — tudo me agrada. E, terminada a leitura, não consigo me apartar daqueles primos irmanados na doença e na paixão, presos à sezão que marca o tempo, a vida, semelhantes a espantalhos inúteis. O que os condenou? O amor ou a malária? A resposta é indiferente, pois amor e malária são a mesma doença — cuja febre se chama Luísa.


10. Entre inúmeros bons contistas de língua hispânica, confesso ter hesitado, mas acabei optando por Horacio Quiroga. Dentre os contos desse uruguaio genial, meu preferido é “Los imigrantes”. A Colección Archivos, da Unesco, cujos volumes ainda podem ser encontrados em sebos ou pequenas livrarias, publicou uma bela edição integral das suas narrativas. Em “Los imigrantes”, num cenário de absoluta desolação, o narrador focaliza um casal que empreende estafante caminhada. Não sabemos para onde seguem. E conheceremos de onde vieram apenas nas últimas linhas do conto. Não importa. Tudo se resume à fatalidade, ao desespero, ao esforço sobre-humano que, no final, nada alcança. O conto é magnífico exemplo de concisão e intensidade — amostra clara de como o artista pode ser genial sem invencionices. Autor de um curioso Decálogo do Perfeito Contista, Quiroga segue à risca, em “Los imigrantes”, a sua regra VIII: “Pega teus personagens pela mão e conduze-os firmemente até o fim, sem ver nada além do caminho que traçastes para eles”.


11. Quero terminar com Joseph Conrad. Em Amy Foster — conto ou novela? — o que se destaca é a técnica de descrever a paisagem ou os personagens secundários sem se desviar do eixo da história e, principalmente, utilizando essas descrições, digamos, acessórias, esses deslocamentos da atenção, como uma forma oblíqua de iluminar os protagonistas. Sempre que um novo detalhe do entorno ou de um personagem menor é oferecido ao leitor, não enxergamos apenas esse elemento, mas sua luz reverbera sobre os personagens centrais. Na verdade, sob tal método de escrita se oculta profundo respeito pelo leitor: oferecer pormenores que contribuam para compor as diferentes cenas, mas sem nos aborrecer com o que é supérfluo — ou seja, não mesquinhar elementos que auxiliem ou estimulem nossa imaginação. O conto apresenta a história do náufrago lançado a uma terra estranha, onde não compreende a língua ou os costumes. Destituído de qualquer bem, impossibilitado de se comunicar e, por uma decisão ética, de retornar ao seu país, ele sofre a desconfiança da maioria dos habitantes da pequena vila. Ao se tornar objeto da aversão gratuita, ao viver na condição de “estranho”, experimenta o pior tipo de solidão: o da total incapacidade para se identificar, seja com o outro, seja com o meio. Na verdade, não é a história de um náufrago, mas de um “pássaro apanhado numa armadilha”.


Literatura e escrita criativa

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