sexta-feira, 6 de junho de 2014

Feitiços do Tempo

Contardo Calligaris

"Feitiço do Tempo" (1993), de Harold Ramis, é um de meus filmes-feitiço, que não são necessariamente obras-primas: são os que não posso me impedir de rever até o fim, a cada vez que, zapeando, esbarro neles.


Por que será que "Feitiço do Tempo" me imobiliza, de olhos abertos, na cama ou na poltrona, até de madrugada? Já me apaixonei várias vezes por Andie MacDowell, mas isso não seria suficiente: o que me pega, no filme, é a história.


O protagonista, Phil Connors, fica bloqueado no tempo, revivendo o mesmo dia durante anos. Ele pode adormecer à noite, morrer ou suicidar-se, tanto faz: ele sempre acorda na mesma hora da manhã do mesmo dia —que os outros revivem como se fosse a primeira vez, enquanto ele sabe que o tempo está emperrado.


O novo filme de Doug Liman, "No Limite do Amanhã", em cartaz agora, talvez se torne, para mim, outro filme-feitiço, e não só pelas suas (grandes) qualidades cinematográficas. Aparentemente, deixo-me enfeitiçar pelos filmes em que o tempo enfeitiça o protagonista e o força a recomeçar o mesmo dia (assim como eu sou compelido a rever o filme, aliás).


Nenhum spoiler: está tudo no trailer de "No Limite do Amanhã". O tenente-coronel Bill Cage vive uma situação análoga à de Phil Connors em "Feitiço do Tempo": sua morte o manda de volta à manhã anterior. Como Connors, Bill Cage tenta melhorar seu dia, para encontrar um desfecho que faça avançar o tempo. Se os dois filmes me enfeitiçam, é porque eles são menos fantásticos do que parece.


É bem possível que vivamos todos, quase sempre, numa constante repetição, que, por não ser o retorno do exatamente idêntico, passa desapercebida. Como sair disso? Como evitar a sensação de estarmos sempre vivendo o mesmo dia?


Jacques Lacan, o psicanalista francês, considerava que os atos, numa vida e na história coletiva, são raros. De fato, o que domina a vida e a história é a repetição. Um ato não é apenas algo inédito (muitas novidades são repetições disfarçadas), mas algo que nos transforma radicalmente, que produz (inclusive em nós mesmos) um novo sujeito. Qualquer um pode passar a vida inteira sem produzir ato algum, só cumprindo o que lhe era destinado, só preenchendo as expectativas do mundo.


Cuidado: o parágrafo que precede acarreta um juízo de valor implícito. Ele transmite a sensação imediata de que a vida repetitiva seja ruim; nesse quadro, o ato seria quase uma obrigação moral. Aparentemente, é preciso e é bom não deixar passar a ocasião de sair da repetição. De onde nos vem essa urgência de quebrar o feitiço do tempo?


A novidade é um valor crucial para a modernidade. E, como qualquer valor, ela se torna um imperativo: renove-se, invente-se a cada dia. Desconfiamos do conformismo e prezamos o gesto de mudança e de ruptura —"revolucionário" se torna uma qualidade, mesmo sem saber de qual revolução se trate.


Claro, se a novidade e a mudança são valores, a repetição só pode ser aflitiva —a continuidade é uma chatice: o que importa nela é a procura de um ato que empurre o tempo e nossa vida para frente.


Mas como a novidade e a mudança se tornaram valores? Talvez seja porque a modernidade valoriza o indivíduo mais do que a comunidade. Ora, a comunidade se afirma na repetição: rituais, tradições coletivas, uniformes etc. garantem que ela viva mais do que o indivíduo. O indivíduo, ao contrário, afirma-se na singularidade de sua experiência, na capacidade de se inventar contra as regras e o destino comuns.


Em suma, há culturas (como a nossa) em que o valor supremo é fazer uma diferença, e outras (como a nossa, antes da modernidade), em que cumprir o destino é o valor supremo e reviver sempre o mesmo dia poderia ser um ideal.


O engraçado é que receamos desperdiçar a vida na repetição, mas também temos nostalgia de um mundo dominado pela repetição, sem a obrigação angustiante de encontrar um ato transformador —são nossos sonhos de saída do mundo, de descanso e aposentadorias campestres e praianos, por exemplo.


Um paciente chega e anuncia triunfante: "Tenho uma novidade". Será que ele pensa que qualquer novidade seja boa, por ser novidade? Ou será que ele se envergonha da repetição, que lhe parece tornar sua vida trivial, indigna de ser vivida e contada? Qual seria a cura? A descoberta da novidade certa ou a descoberta de que a repetição é digna de ser vivida?


Folha de São Paulo


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