sexta-feira, 13 de setembro de 2013

“Mensalão”: os motivos para novo julgamento



O que são os “embargos infringentes”, que STF pode aceitar. Por que decisão corrigiria injustiça e reabriria debate indispensável

Raimundo Pereira

O texto abaixo é o editorial de maio da revista “Retrato do Brasil”. A conhecida morosidade do Judiciário adiou para a próxima quarta-feira (16/9) o último voto acerca dos “embargos infringentes” ao julgamento do chamado “mensalão” — que deveriam ter sido avaliados no final de maio. Exceto por este detalhe temporal, contudo, a análise permanece de grande atualidade, assim como a cobertura da revista acerca da Ação Penal 470.

1. A publicação oficial, no final do mês de abril, do chamado acórdão do julgamento do mensalão – as conclusões escritas que resumem o resultado da Ação Penal 470 – levou o jornal O Estado de S. Paulo a fazer um inquérito com os atuais dez integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) para saber da possibilidade da aceitação dos “embargos infringentes”, que são instrumentos de apelação em princípio disponíveis aos réus nos casos em que a sentença de condenação recebida teve no entanto, um mínimo de quatro votos contrários, pela absolvição. Cinco dos juízes, do total atual de dez – pois o 11º, para a vaga disponível após a saída do antigo presidente da Corte, Ayres Britto, ainda não tinha sido nomeado na última semana de abril –, declararam ao jornal, seguramente um dos mais importantes do País, ser favoráveis à aceitação desses embargos.

O embargo infringente é, de fato, a possibilidade de um novo julgamento. No próprio acórdão, o ministro Celso de Mello, o decano do STF, reafirma o que já havia dito em sessão da AP 470. Na ocasião, ele respondia aos réus que exigiam respeito ao direito, assegurado a todo cidadão comum, de, em caso de condenação, se poder apelar a uma segunda instância. O julgamento do mensalão começou já no STF, a última instância da Justiça, pelo fato de três dos 40 réus serem parlamentares e terem direito ao chamado foro privilegiado, isto é, só poderiam ser julgados pelo Supremo, portanto, sem uma instância superior a que apelar. Mello argumentou, então, que o STF tinha um mecanismo para permitir um segundo julgamento, o embargo infringente. Esse recurso está previsto, para todas as ações penais movidas a partir da Suprema Corte, no artigo 333, inciso I do Regimento Interno do STF, norma editada pelo tribunal sob a vigência da Constituição de 1969, da época do regime militar, mas aceita posteriormente pela Constituição da redemocratização do País, a de 1988, disse ele.

No texto final do julgamento, no acórdão agora publicado, Mello reafirma essa conclusão. E a pesquisa do Estadão junto aos ministros sugere que a opinião de Mello é majoritária na corte. Deve-se notar, ainda, que o texto de Mello trata, inclusive, da discussão, corrente em alguns círculos jurídicos do País, sobre a possibilidade de os réus recorrerem à Corte Interamericana de Justiça, em função de pacto assinado pelo Brasil para garantir a dupla jurisdição. Escreveu Mello no acórdão: “E, o que é mais importante, essa regra [da aceitação dos embargos infringentes] (…) permite o “pleno o respeito ao direito consagrado na própria Convenção Americana de Direitos Humanos, na medida em que viabiliza a cláusula convencional da proteção judicial efetiva”. A seguir, cita o art. 8º, n. 3, alínea h, do pacto assinado pelo Brasil em San José, na Costa Rica, referente àquela convenção.

Mello é explícito em dizer que a aceitação do embargo infringente garante que haverá, de fato, um novo julgamento: haverá um novo relator e um novo revisor – portanto, os fatos apreciados no julgamento inicial serão vistos, então, sob uma nova ótica. Escreveu Mello no acórdão, citando ainda outro artigo, o de número 76 do Regimento do STF: “É de observar-se, ainda, que, apostos os embargos infringentes, serão excluídos da distribuição”, ou seja, do sorteio a ser feito para definir os encarregados de organizar a nova apreciação do caso, “o Relator e o Revisor, o que permitirá, até mesmo, uma nova visão sobre o litígio penal ora em julgamento”. Por fim, Mello parece procurar reafirmar os princípios básicos do direito penal brasileiro – os quais, diga-se de passagem, a nosso ver, o STF “flexibilizou” no julgamento já feito. Diz ele: “Finalmente, desejo enfatizar, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal decidirá o presente litígio penal com apoio exclusivo na prova validamente produzida nos autos deste processo criminal, respeitados, sempre, como é da essência do regime democrático, os direitos e garantias fundamentais que a Constituição da República assegura a qualquer acusado, observando, ainda, neste julgamento, além do postulado da impessoalidade e do distanciamento crítico em relação a todas as partes envolvidas no processo, os parâmetros jurídicos que regem, em nosso sistema legal, qualquer procedimento de índole penal. Em uma palavra, Senhor Presidente, o Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional e máximo guardião e intérprete da Constituição da República, garantirá, de modo pleno, às partes deste processo, ao Ministério Público e a todos os litisconsortes penais passivos o direito a um julgamento justo, imparcial, impessoal, isento e independente”.

2. Assim, portanto, em que pese o fato de Joaquim Barbosa, o ministro relator da AP 470 e hoje presidente do STF, e Roberto Gurgel, procurador-geral da República, que conduziu a acusação, terem divergido frontalmente da conclusão de aceitação dos tais embargos, passou a existir a possibilidade clara de um novo julgamento do mensalão. Praticamente metade dos réus condenados, 12 dos 25, recebeu quatro ou cinco votos contrários, pela absolvição, em alguns tipos dos crimes dos quais foram acusados. E um desses crimes, o de formação de quadrilha, pode ser tido como o principal do julgamento. Condenados sob essa acusação estão, por exemplo, José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares e Marcos Valério, além de Kátia Rabello e José Roberto Salgado, respectivamente ex-presidente e ex-vice-presidente do Banco Rural. No caso da formação de quadrilha, se uma nova votação fosse feita sem qualquer mudança na posição dos juízes que fizeram o primeiro julgamento, no caso de um segundo já estaria aberta a possibilidade clara de absolvição dos réus. O último ministro a sair, Ayres Britto, votou pela condenação de todos eles. Mas como votaria o ministro que o substituiu, Teori Zavascki? Se ele votasse a favor, o placar de 6 a 4 se transformaria num empate de 5 a 5 e, de fato, numa absolvição dos réus, visto que, embora com relutância, o STF aceitou o princípio secular do in dubio pro reu. Deve-se notar que foi Zavascki o autor da proposta que levou o STF a decidir pela concessão de maior tempo aos advogados dos chamados mensaleiros para entrar com o outro tipo de embargo, os declaratórios. Barbosa foi derrotado no coletivo do STF por sete votos a um. Só ele divergiu. E o prazo de apreciação do acórdão pelos advogados dos réus, com vistas à apresentação dos embargos declaratórios, foi estendido de cinco para dez dias, o que parece muito razoável, visto o texto do acórdão ter 8.405 páginas. Barbosa, em seu propósito de condenação – ele já tinha declarado, em entrevista coletiva a jornalistas estrangeiros, pretender ter os mensaleiros presos a partir do início do próximo semestre –, pareceu querer uma condenação como a aplicada ao ex-presidente paraguaio Fernando Lugo, julgado, condenado e deposto em poucos dias.

Os embargos infringentes têm prazo de 15 dias, contados a partir da data de publicação do acórdão, 22 de abril, para ser apresentados ao STF. Sua apreciação pela corte, se for muito rápida, deverá começar, portanto, nos dias finais deste mês de maio. Há ministros, como o revisor da AP 470, Ricardo Lewandowski, que são contra haver pressa nesse reexame do caso. “Nós temos que garantir, segundo dispõe a Constituição, o mais amplo direito de defesa, que é um princípio universal. Portanto, não devemos ter pressa nesse aspecto. Aliás, não vejo por quê. Não há nenhuma prescrição em vista. Então, deixemos que o processo flua normalmente.”

Deve-se notar, no entanto, que existem forças poderosas atuando para que os embargos infringentes não sejam aceitos. O já citado O Estado de S. Paulo, o jornal, sem dúvida, de maior peso político do País, em editorial do dia 24 de abril, com o título de “Duas lógicas no Supremo”, diz que, se aceitar os embargos infringentes, o STF estará mudando a lógica do julgamento anterior. O jornal contesta a afirmação de Celso de Mello de que os tais embargos são cabíveis. E critica a possibilidade do “abrandamento das penas pretendido pelos réus”. Diz que corre risco a “imagem que, ao longo de 53 sessões televisionadas do julgamento do mensalão, a corte [o STF] construiu perante uma opinião pública farta da impunidade dos réus”. Diz ainda o Estadão: “Uma sensação de logro, de que o STF ‘arregou’, poderá se difundir pela sociedade mesmo se nenhum dos ministros remanescentes mudar o seu voto pela condenação e apenas o novo colega Teori Zavascki desfizer o resultado original, alinhando-se com a minoria que optou pela absolvição”.

É preciso ver, além do mais, que o acórdão publicado reafirma a acusação básica e as 25 condenações que emergiram do julgamento televisivo da meia centena de sessões citada pelo Estadão. Ele diz que uma grande quadrilha, uma “associação estável – que atuou do final de 2002 e início de 2003 a junho de 2005, quando os fatos vieram à tona – era dividida em núcleos específicos, cada um colaborando com o todo criminoso, os quais foram denominados pela acusação de (1) núcleo político; (2) núcleo operacional, publicitário ou Marcos Valério; e (3) núcleo financeiro ou Banco Rural”. O acórdão reafirma que nesses três bandos, “tendo em vista a divisão de tarefas existente no grupo, cada agente era especialmente incumbido não de todas, mas de determinadas ações e omissões, as quais, no conjunto, eram essenciais para a satisfação dos objetivos ilícitos da associação criminosa”. E após o resumo dos crimes que teriam sido cometidos e da opinião condenatória da maioria do STF a respeito deles, o documento abre a lista de condenações de um por um dos 25 sentenciados pelo crime do chamado mensalão por aquele que é considerado o chefão de tudo, José Dirceu de Oliveira e Silva. Ele está condenado a dois anos e 11 meses de prisão pelo crime de formação de quadrilha e a mais sete anos e 11 meses de prisão pelo crime de corrupção ativa, além de 260 dias-multa no valor de dez salários mínimos cada.

3. Retrato do Brasil, no entanto, saúda a clara possibilidade de haver um novo julgamento. Acha, inclusive, que não basta reexaminar alguns casos e minorar algumas das penas aplicadas. É a essência do julgamento do mensalão que precisa ser reexaminada. O acórdão publicado, por sinal, repõe, num aspecto formal, o mensalão de cabeça para cima. Como dissemos em nossa edição especial de abril/maio – “A construção do mensalão: como o Supremo Tribunal Federal, sob o comando do ministro Joaquim Barbosa, deu vida à invenção de Roberto Jefferson” –, o relator da AP 470, no julgamento que, esperamos, seja apenas o inicial dessa incrível história, esquartejou a verdadeira história e a serviu ao público como um prato feito, pela condenação. Barbosa deu ao público uma historinha. Ele transformou a história do “maior crime político da história do País”, que se pretendia provar e que teria sido feito basicamente a partir de um monumental e ostensivo desvio de 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil, com o objetivo da compra de votos de deputados da base aliada para sustentar o governo Lula, numa historinha de pequenos ladrões do dinheiro público. Para tanto, o fez ao contrário: começou pelo crime de formação de quadrilha e pela condenação de José Dirceu. Barbosa começou por dois supostos crimes de desvio de dinheiro público e pelas condenações de dois petistas que os teriam comandado: João Paulo Cunha, o metalúrgico petista que dirigiu a Câmara dos Deputados entre o início de 2003 e o início de 2005, e Henrique Pizzolato, o bancário petista que foi diretor de comunicação e marketing do Banco do Brasil nesse mesmo período. Como RB comprova em sua edição especial sobre o mensalão, não há nos autos qualquer prova desses dois desvios. Aliás, existem nos autos abundantes provas de que os tais recursos, do BB e da Câmara, foram gastos exatamente nas atividades às quais estavam destinados: a propaganda da venda dos cartões de bandeira Visa pelo BB e a divulgação das atividades da Câmara dos Deputados.

E, a despeito de não ser a regra, porque cabe à acusação provar o crime e não ao acusado provar que não é culpado, um novo julgamento permitirá, inclusive, que apareçam, de modo mais amplo para a opinião pública, as provas de que o desvio de dinheiro público não existiu, como exibimos em uma série de reportagens da revista.


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