quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Na civilização do Carro: Sobre a insanidade do trânsito no Brasil e no Rio




“Fé em Deus e pé na tábua – ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil”, de Roberto DaMatta com os pesquisadores João Gualberto Vasconcellos e Ricardo Pandolfi, é mais uma das obras em que o antropólogo parte da análise de temas do cotidiano – como ele já havia feito com o carnaval e o futebol – para pensar os problemas que constituem a gênese da hierarquia social brasileira, suas formas de reafirmação e suas origens ancestrais.

Os artigos que compõem o livro são resultado de um trabalho realizado para o governo do Espírito Santo que tinha como objetivo melhorar o que se chama de “educação no trânsito”, termo passível de questionamento na medida em que supõe uma disposição de cumprimento de regras em nome do bem comum cuja transgressão faz justamente com que DaMatta identifique o trânsito como espaço de barbárie.

Bastaria tentar ser pedestre no Rio de Janeiro para fazer essa afirmação. Faixas destinadas a atravessar a rua não são respeitadas, sinais são avançados por carros e ônibus a qualquer hora do dia, e a mão na buzina é o gesto mais comum, hostil e violento que faz do motorista carioca, sobretudo, um grosso.

Por ano, cerca de 40 mil pessoas morrem de acidente de trânsito no Brasil, mas nós continuamos considerando o ir e vir nas ruas motorizadas não como um problema político, mas no máximo como questão de melhor organização do uso das vias públicas.

O próprio nome já é um problema: como demonstra DaMatta, o espaço público, no Brasil, é entendido como aquele que se opõe ao espaço doméstico, não tem dono e pode, portanto, ser o lugar da bandalheira, palavra da qual decorre o termo “bandalha”, muito comum no vocabulário e na prática do motorista brasileiro, em geral, e carioca, em particular.

Não existe motorista (nem cidadão-pedestre brasileiro) que não tenha ficado raivoso, impaciente, irritado ou até mesmo tenha entrado em surto neurótico com o automóvel da frente, detrás ou do lado, tomando-o como um adversário, jamais como um parceiro; que não tenha deliberadamente ultrapassado com alto risco um sinal, em nome de alguma tarefa urgente ou superior; que não tenha demorado para sair de uma vaga com a intenção de perturbar ou sacanear, como falamos coloquialmente, aquele carinha – o outro motorista que, impaciente, espera por sua vez; e que não tenha, como um bárbaro assassino em potencial, indignado e ofendido, enfiado o pé na tábua ao ver um pedestre aflito deslocando-se alguns metros à sua frente.

Impossível não se identificar com esse trecho, que vale para pedestre ou motorista e faz uma descrição precisa e perfeita do que são as relações no trânsito, sempre marcadas pela idéia de que o outro é um adversário a ser combatido, enfrentado, superado, ultrapassado na próxima curva.

DaMatta tem o grande mérito de, com isso, não inocentar o pedestre – porque muitos dos críticos do trânsito o fazem dentro de uma falsa dicotomia entre maus motoristas e bons pedestres –, mas olhar para a complexidade das relações que se estabelece nas ruas como um reflexo da profunda desigualdade da sociedade brasileira. Desigualdade que não é só de renda, escolaridade, acesso à saúde, mas sobretudo uma desigualdade ainda profundamente ligada a um passado de cultura escravocrata que não conseguiu “equacionar anonimato, igualdade, respeito e civilidade pelo outro, o cocidadão que conosco compartilha desses espaços abertos, teoricamente sem patrões (ou donos), que constituem a chamada malha urbana e pública”.

Pensar sobre essa estrutura patriarcal e escravocrata sobre a qual nunca se chegou a refletir profundamente seria, sobretudo, no argumento de DaMatta com o qual concordo completamente, parar de pensar no problema da desigualdade como exclusivamente político (como sempre se faz, por exemplo, em ano de eleição). A desigualdade brasileira não é uma questão a ser exclusivamente enfrentada e combatida por políticas de Estado, mas é parte integrante da ordem social brasileira e, como tal, deve ser combatida por todos nos gestos mais cotidianos.

“O fato concreto é que o cidadão brasileiro, seja pedestre, ciclista, motociclista, motorista ou até mesmo carroceiro, tem uma dificuldade atávica no que diz respeito à obedecer à lei”, diz DaMatta, argumentando que essa dificuldade está diretamente ligada à inferioridade e subordinação social. A lei, no Brasil, não foi feita para todos, mas para aqueles que não têm outro jeito se não obedecê-la. Os que se autoproclamam livres das amarras da lei o fazem baseados na (falsa) percepção de distinção social, manifestação explícita do “sabe com quem você está falando”.

O carro como objeto de desejo e o modelo urbano das cidades pequenas
Há cerca de duas semanas estive na pequena cidade de Águas de Lindóia (SP) para um congresso. Entre muitas outras coisas, me impressionou na cidade o quanto todos parecem ser carro-dependentes, na repetição compulsiva de um modelo já falido nas grandes cidades, e ainda reproduzido infinitamente nas cidades pequenas. O problema, pensava eu enquanto subia a rua principal, é que o carro no Brasil é mais do que um meio de transporte, é sobretudo um símbolo de status do qual dificilmente o motorista quer abrir mão.

DaMatta dedica um dos artigos do livro a esse tema já tão debatido, mas cuja influência no comportamento do motorista é decisiva. Afinal, se como ele diz, o carro é objeto de desejo, enquanto o carro não for desmistificado como parte de um processo de ascensão social, dirigir continuará ligado ao prazer – muitas vezes, ao prazer de poder, estando sobre quatro rodas, tornar-se um dos que infringe as regras – e ao lugar superior em relação ao pedestre como aquele que são “escorraçados para o poço profundo da cidadania à brasileira”.

Escolher, como eu estou fazendo, trocar o carro pela condição de pedestre, ciclista ou passageira de metrô ou ônibus, dependendo do trajeto, do tempo e das condições climáticas (difícil ser ciclista na chuva, por exemplo), torna-se, a partir da leitura de DaMatta, uma espécie de ato de resistência. Muita gente não entende a minha decisão, mas de fato eu voluntariamente estou abdicando não apenas de dirigir, mas de participar desse sistema de castas em que se transformou o trânsito carioca. Andar a pé pode ser tornar, assim, um gesto político de recuperar a qualidade e a distinção do pedestre – o flaneur das grandes cidades modernas, que desde o final do século XIX encarna a percepção do espaço urbano como um labirinto a ser explorado.

Que esse labirinto não seja presa dentro de um carro, cercada de buzinas por todos os lados, já me parece uma forma melhor de se perder por aí.


Contemporânea

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