sábado, 12 de dezembro de 2009

Bibliotecas públicas e a voz da comunidade



Esses dias eu percebi que um hábito de consumo meu mudou muito desde que me mudei para Londres. Eu praticamente parei de comprar livros aqui. Neste ano, só comprei dois livros.

No entanto, 2009 foi um ano em que li vários livros - de clássicos a lançamentos recentes. O motivo disso são as excelentes bibliotecas públicas de Londres. É difícil achar defeitos nas bibliotecas daqui. Os catálogos são atualizadíssimos, quase sempre com várias cópias dos últimos lançamentos do mercado. Os prazos são flexíveis (três semanas por livro), com multas baixas e possibilidade de renovação pela internet.

Caso você não encontre um livro na sua biblioteca, mas que está disponível em outra do mesmo bairro, é possível encomendá-lo via internet para que ele seja retirado na biblioteca mais próxima da sua casa. Eu, que moro na fronteira de dois bairros de Londres - Lambeth e Southwark -, ainda tenho a vantagem de poder explorar os catálogos dos dois bairros.

Isso sem falar no vasto catálogo de CDs e DVDs, que são alugados a baixos preços. Isso explica porque há tão poucas locadoras de filmes em Londres. É impossível competir com a biblioteca pública.

Além disso, as bibliotecas se esforçam para unir pessoas de interesses comuns na comunidade. Há mais de um ano, minha esposa e eu estamos frequentando um grupo de leitores de quadrinhos. Nunca fui um grande fã das "graphic novels", mas confesso que graças ao grupo conheci vários quadrinhos com qualidade superior a de muitos livros da literatura clássica, como a série Love & Rockets, dos irmãos Hernandez.

Pois foi frequentando o grupo de quadrinhos que tive uma inusitada experiência de participação política nas decisões da comunidade daqui.

Há dois meses, os administradores das bibliotecas de Lambeth decidiram encerrar as atividades do grupo de quadrinhos do qual eu participo. Na visão deles, não havia necessidade de pagar hora extra para o funcionário que organizava os encontros. As reuniões acontecem uma vez por mês às 19h30, o único horário possível para quem trabalha durante o dia.

Nós não aceitamos uma possível troca de horário e o funcionário disse que, nesse caso, não havia nada que ele pudesse fazer para salvar o grupo, que teria de ser encerrado. Mas ele sugeriu que nós, os usuários do serviço, poderíamos enviar cartas e e-mails para protestar contra a decisão.

Depois de três e-mails enviados, a biblioteca recuou da decisão e optou por continuar com o encontro no horário marcado, arcando com os custos de se manter as reuniões naquele horário.

Ficamos contentes com a decisão, porque o grupo faz um trabalho de alta qualidade ao longo dos últimos quatro anos e com grande participação de pessoas da comunidade. Com ajuda de outros grupos de quadrinhos de Londres, já recebemos a visita de ilustradores famosos, como Kevin O'Neill, da Liga de Cavalheiros Extraordinários, e D'Israeli, de Scarlet Traces.

Fiquei pensando que algumas experiências da Grã-Bretanha eu gostaria muito de poder exportar para o Brasil. Uma delas é o acesso gratuito ou com baixo preço a livros, discos e filmes para todos - tudo com dinheiro público. A outra é a de ter a minha voz ouvida nas decisões da comunidade, por menores e mais irrelevantes que elas possam parecer para os demais.

Daniel Gallas
BBC Brasil

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