quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Michel Zaidan Filho: As nuances da renovação comunista no Brasil


Dedicado à Luís Werneck Vianna, Carlos Nelson Coutinho, Ivan Pinheiro, Leandro Konder, Fábio Barbosa, David Capistrano Filho. Protagonistas dessa história.

A velha política de alianças, praticada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), já foi apontada como o exemplo do melhor patrimônio político do partido, nesses últimos 50 anos. Há quase um consenso, no campo comunista, em torno do acerto dessa política – também chamada de “frente democrática”, durante os anos de chumbo – como o justo caminho para a restauração do regime democrático em nosso País. Mas, enquanto alguns sempre pensaram na “frente democrática” de um ponto de vista meramente tático – de olho numa outa frente ou ainda por puro pragmatismo político, através do expediente de adaptações parciais da sua linha à cada conjuntura – havia também aqueles militantes que buscaram oferecer um fundamento estratégico para a experiência frentista no brasil e defendiam a democracia (sem adjetivos) como valor histórico-universal. Seriam estes a quem chamaríamos os responsáveis pelo processo de renovação da política comunista entre nós.



Contudo, até a marginalização desse significativo grupo, em fins de 1983, no ápice do longo período das discussões preparatórias para o VII congresso do então Partido Comunista brasileiro (PCB), não havia ocorrido ainda uma oportunidade de explicitação das diversas teses do pensamento renovador. A partir de sua articulação em torno da extinta revista Presença, foi possível assim reconhecer os vários matizes dessa tendência e identificar o seu lugar na história do pensamento comunista brasileiro, e, sobretudo as suas possibilidades de atuação na assim chamada “sociedade civil” brasileira.





Apesar desse grupo renovador reivindicar abertamente o acervo das conquistas da política de amplas alianças, desde pelo menos a formulação da “nova política” (1958), poder-se-ia distinguir duas grandes orientações: uma mais antiga, que se vincula historicamente aos logros e vitórias da frente democrática, nos últimos 50 anos, materializados na trajetória do antigo MDB, depois PMDB, e finalmente na Aliança Democrática. Esses renovadores valorizavam a ação prático-experimental do PCB como uma custosa e contraditória reflexão sobre a complexidade da realidade brasileira, expressa, grosso modo, na política de frente única, aliada à recuperação teórica do liberalismo, tendo por base a modernização capitalista da sociedade brasileira, operada pelo regime militar de 1964. O pressuposto mais claro explicitado por essa concepção era que tal modernização teria engendrado forças e fatores sociais que já não se reconheciam na precária fachada de pardieiro político em que havia se transformado o regime. Este é um dado estratégico que conferia radicalidade ao processo de construção/reconstrução de uma nova institucionalidade democrática no País.



Assim, os novos agentes – entre os quais o proletariado do ABC uma intelectualidade de novo tipo, as camadas médias, outros setores urbanos e a burguesia industrial da FIESP, que incorporaram os valores da democracia liberal à sua luta de oposição ao regime – seriam os componentes estratégicos de uma nova ordem liberal no Brasil a serem levados na devida conta pelos comunistas, em sua estratégia democrática radical para o país. Estratégia que desautorizaria, por sua vez, a assunção de concepções e práticas golpistas ou “esquerdizantes”, e que se expressaria com todo vigor na decisiva reavaliação dos aspectos propriamente institucionais das estruturas democrático-liberais do estado brasileiro, e numa articulação das forças heterogêneas produzidas pela ação modernizadora dos militares no Brasil, no espaço privilegiado da política.





A outra orientação da corrente renovadora partia, sobretudo, de uma leitura “européia” no sentido da socialização política dos efeitos sobre os efeitos produzidos na sociedade brasileira pelo capitalismo monopolista, nas várias décadas do regime militar. Segundo os porta-vozes mais autorizados dessa versão, o capital monopolista – com a intervenção do aparelho estatal na reprodução capitalista – teria provocado grandes alterações na estrutura da sociedade brasileira, cuja manifestação mais evidente seriam as grandes empresas capitalistas estatais, a capitalização da agricultura brasileira, a proletarização das camadas médias, a hipertrofia do setor de serviços e do sistema financeiro, a constituição de uma moderna indústria de ponta etc.



Estas alterações estruturais contidas no marco de uma institucionalidade político-tecnocrática-militar, teriam dado origem a uma multiplicidade de movimentos sociais urbanos, que pressionariam o Estado pelo reconhecimento de direitos e deveres. O surgimento destes “sujeitos coletivos” na cena política – juntamente com a politização da economia – também reporia a validade dos institutos democráticos sobre novas bases, ressaltando, porém, os entraves que as veleidades golpistas e instrumentalizadoras cumpriam nos movimentos de massa, colocando explicitamente a necessidade de sua radical substituição por uma estratégia consistente que conferisse peso e densidade aos movimentos sociais e se lastreasse na “democratização progressiva” do Estado burguês. Para o que seria indispensável o urgente equacionamento da representação político-institucional dos movimentos populares, sobre bases muito diferentes das até agora conhecidas. A novidade aqui seria a aberta tematização dos movimentos sociais, e de sua importância nessa estratégia democrática radical.





A conjuntura que então se abriu, com a sucessão do último general-presidente do regime militar, tornou-se uma ocasião privilegiada para o esclarecimento definitivo dessas nuances do grupo renovador. A despeito da convergência quanto à importante vitória do primeiro presidente civil para a transição democrática, seria possível ademais detectar os problemas do discurso renovador. Enquanto, para alguns o espaço privilegiado da política era a cena institucional, liberta agora do autoritarismo histórico que mantinha a sociedade civil corporativizada , e a estratégia posta em prática pela Aliança Democrática (sob a direção dos liberais), aparecia como a materialização da política comunista ( com o risco de subsumir a questão democrática à vigência dos institutos liberais), para outros, o “lado fraco” da transição era justamente a fraqueza das instituições partidárias no País e a ausência de representação política dos assim chamados “sujeitos coletivos” produzidos pela modernização capitalista oriunda do regime militar (para estes, a questão democrática passaria necessariamente por uma articulação mais orgânica entre os movimentos sociais de base e a política institucional. Segundo ainda esta versão, na ausência de sujeitos coletivos razoavelmente constituídos e de uma melhor articulação entre o político-institucional e o social, o perigo de uma reconversão liberal da transição seria muito grande.



Uma consideração substanciosa, embora não se ofereça neste discurso nenhuma perspectiva para o futuro imediato, como por exemplo na primeira versão. Em razão desses parâmetros, onde a divergência certamente se acentuava era no plano da organização. Enquanto, os primeiros consideravam a forma-partido – uma vez escoimada das concepções envelhecidas (o predomínio da estrutura organizacional sobre a definição da política), como requisito fundamental para ação dos comunistas na sociedade brasileira, os segundos já teriam descartados, pelo menos no curto prazo e na forma PC, toda e qualquer preocupação com a questão orgânica, por defasada em relação à complexidade social do País, e se concentravam na “batalha das idéias” – estratégia consentânea com a intrincada rede de agências da sociedade civil brasileira. Para estes últimos, de maior eficácia seria a atuação nos poros do tecido social brasileiro, com vistas a uma ação de longo prazo.





Malgrado essas observações, é preciso ponderar que tais nuances ainda não tinham assumido uma posição consolidada no campo do pensamento renovador nem tinham cumprido todo o seu papel no PCB. Pois alguns setores do partido absorveram, com maior ou menor cautela as potencialidades da corrente renovadora. E este estado de irresolução favoreceu – e muito – a uma dispersão organizativa de sérias consequências no raio de influência que o grupo poderia ter exercido na necessária reciclagem da política e do pensamento dos comunistas brasileiros.


(1985)

Post-scritum


Tudo isso mudou com os rumos tomados pela política brasileira. A dispersão organizativa e política desse grupo renovador terminaria por neutralizar a influência benéfica e “aggiornata” da ação exercida pelo grupo, nas organizações partidárias da esquerda e do centro. Uns, foram absorvidos pelo pragmatismo da política de centro do PMDB. Outros abandonaram o comunismo e tornaram-se à esquerda do PT. O que sobrou dessa experiência está em organizações políticos de centro, auxiliando um governo sem legitimidade e apoio popular. Lamentavelmente, trocaram uma rica história de elaboração político-teórico renovadora por cargos e mandatos de suplentes, fora de suas bases eleitorais. Mas que fique aqui o registro histórico dessa experiência para o conhecimento da posteridade.



Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.


BLOG DO JOLUGUE


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