sábado, 30 de dezembro de 2017

Ainda a Revolução Russa. A revolução e o Estado

Jaldes Meneses

De te fabula narratur - Horácio

Previsivelmente, a comemoração do centenário da revolução russa reuniu o melhor e o pior, o biscoito fino e o lixo, da análise política e da teoria social. Centenas de debates, seminários, mesas redondas, colóquios, publicações, etc., demonstram que a revolução de outubro (calendário Juliano, sete de novembro, calendário Gregoriano) permanece um acontecimento vivo e interpelando o tempo presente de nossas vidas. Desta maneira, antes de tudo, dado o impacto numérico das comemorações, é importante observar - para além da qualidade e do mérito das contribuições - que fazer o balanço vertical da revolução trata-se de uma matéria histórica presente, sujeita a controvérsia de imediata ressonância política. As posições a respeito da revolução se politizam rapidamente. Mais que passado ou presente, à maneira do estudo de um paraíso perdido do neolítico ou uma civilização pré-colombiana, a revolução russa continua interpelando o futuro.



No começo de 2017, um interlocutor de internet, acadêmico brasileiro de boas intenções esquerdistas, escreveu a respeito da revolução russa: discutir a Revolução Russa é fácil. O difícil é pensar o socialismo no século XXI. A questão do interlocutor é falsa. Inexiste motivo crítico-analítico consistente de operar uma sutura artificial entre história e projeto. Na relação entre história e projeto, A retroalimenta B, e vice-versa. Ambos, socialismo e revolução, são reflexões fundamentais, decisivas. Nem revolução russa, nem socialismo (século XXI é um rótulo interessante, a depender do uso publicitário que se faça), são reflexões fáceis, a não ser que as reduza a alguma convicção dogmática ou a alguma hagiografia fidelizadora. Mas, assim procedendo, não seria refletir. Seria repetir ou, pior, falsificar.



Comemorar 1917 em 2017, inevitavelmente, condensa as marcas de nosso tempo. No ex-território vermelho, o regime pós-socialista e autocrático de Vladimir Putin fingiu conceder à revolução uma comemoração discreta - apesar da algazarra de turistas estrangeiros. Apenas fingimento. Passada a tempestade alcoólica de Boris Ieltsin (1991-1999), cujo projeto receitava o purgante da subordinação de um Império multinacional e multissecular aos Estados Unidos, a nova Rússia pós-socialista permanece um gigante geopolítico exatamente por herdar as reservas de poder legadas pelos escombros do antigo regime, através dos ativos das reservas de petróleo e gás (abastecedoras de energia da União Européia), do arsenal atômico e das forças militares terrestres, acantonadas frente a frente à OTAN.



Principalmente, assim como em 1917, em 2017 o mundo não está satisfeito consigo mesmo. Nos excelentes ensaios de “Ecos da Marselhesa” (quatro ensaios sobre a comemoração dos duzentos anos da revolução francesa em 1989), Eric Hobsbawm (1996) recorda que, passados os anos de distância do acontecimento original, cada efeméride é comemorada no compasso do "espírito do tempo”. 1989 foi o ano das “revoluções” que puseram o fim das experiências de “socialismo real” no leste europeu - o Annus Mirabilis nas palavras do economista liberal brasileiro Roberto Campos. As revoluções, além de perigosas e violentas, pareciam fúteis. Parecia que Tocqueville havia derrotado Marx. Nem tardou, o “espírito do tempo” virou a partir da crise catastrófico-sistêmica de 2008. De alguma maneira, as comemorações recentes do centenário da Revolução Russa parecem ressuscitar um espectro. Comemorar a revolução é sempre dela se aproximar.



No alvorecer do século XX, a instauração do regime dos sovietes na velha Rússia czarista soava as trombetas de um acontecimento inaugural. Eric Hobsbawm (1994) chegou a escrever que ali começava o “curto século XX”, precisamente encerrado em 31 de dezembro de 1991, com a autodissolução da União Soviética em um enigmático processo de vitória sem guerra, o haraquiri de um Estado, no qual o principal antagonista, os Estados Unidos, obtêm uma rendição sem tiro nem resistência. Logo se gritou, à maneira de um profeta alegre e de porre: “o comunismo acabou”! Talvez a principal lição a depreender das comemorações do centenário da Revolução Russa, hoje, seja que acabou uma experiência estatal sem possibilidade de retorno -, mas não o socialismo ou o comunismo.



Apesar do vai-e-vem de política internacional do lado americano na guerra fria, estimulado por brucutus belicistas (Gal. MacArthur, Harry Truman, James Forrestal, Foster Dulles, etc.) - demonstrando que o personagem de ridículo político chamado Donald Trump, longe de ser um raio em céu azul, completa a última geração de uma linhagem -, prevaleceram, afinal, as estratégias de contenção racional formuladas por George Kennan. Único ministro ou embaixador americano expulso de Moscou por Stalin em 1952, em mais de 230 anos de relações diplomáticas entre os dois países (Gaddis, 2014: 469), a visada estratégica de Kennan era certeira. No famoso “Documento X”, telegrama que ele enviou em 1946 ao Departamento de Estado, no ano seguinte publicado pela Foreign Affairs (Kennan, 1947), se os Estados Unidos conseguissem erguer um cordão sanitário, cercando a área de influência soviética, impedindo sua expansão, o modelo de socialismo de Estado da URSS um dia, talvez ainda distante, cairia por dentro, a partir das contradições internas geradas pelo desempenho econômico, social, político e cultural.



A ordem do comando estratégico americano era não permitir crescer, em nenhuma hipótese, os partidos comunistas e socialistas radicais no ocidente – motivo do apoio norte-americano aos golpes militares na América Latina. Nestes aspectos, inegavelmente, a geopolítica norte-americana na guerra fria conduziu uma política hegemônica – no sentido de tentar aglutinar, através de certo consenso, os países do “ocidente” capitalista contra o “oriente” soviético. Na aplicação dessa política hegemônica, houve a reconstrução da Europa em frangalhos – Plano Marshall –, a modernização do Japão, Coréia do Sul e Taiwan, além algum beneplácito no desrespeito interno ao padrão dólar-ouro, através de políticas monetárias lassas e inflacionárias de “fuga para frente" em países em ciclo de desenvolvimento, como o Brasil de 1930 até 1971.



Inaugural e fundamental, a Revolução Russa, evidentemente, não foi a única novidade societária do "curto" século XX. As bombas arremessadas pelo cruzador Aurora no Palácio de Inferno em Petrogrado, realmente, anunciam um novo tempo. No encalço e na negação dialética do socialismo chegaram Fascismo, Nazismo, Salazarismo, Franquismo, New Deal, além de regimes como o Peronismo e o Varguismo na periferia latino-americana, poucos anos adiante, também constituíram múltiplas e contraditórias respostas à crise global do capitalismo e da superestrutura que o reproduzia até então, o Estado liberal clássico.



O tempo de vigência do Estado liberal clássico foi a Belle Époque, começos do século passado. Neste sentido, uma das interpretações possíveis da tese do século XX “curto” (1918-1991) é que, desde essa época, o liberalismo clássico desapareceu e nunca mais retornou como prática fundamental de governamentalidade. Ou seja, o senso comum, corriqueiro no discurso político, de interpretar o neoliberalismo como o retorno do laissez-faire trata-se de uma miragem inconsistente em termos de teoria política e econômica. Hayek não é Adam Smith; von Mises não é Menger; tampouco Margaret Thatcher é Winston Churchill, a não ser em termos tão abstratos e genéricos que as identidades aparentes se tornam irrelevantes.



Escreve-se muito sobre as diferenças políticas entre marxismo e neoliberalismo. Talvez fosse melhor prestar mais atenção às diferenças entre liberais da Belle Époque e neoliberalismo de hoje. Em primeiro lugar, a teoria neoliberal jamais postulou Estado mínimo e laissez-faire. Tanto quanto os marxistas, os neoliberais não crêem no mito de um ponto permanente de equilíbrio da economia capitalista, como idilicamente acreditavam os adeptos da teoria neoclássica.



Em interessante livro, Uma Viagem pelo tempo econômico (1994), o economista americano John Kenneth Galbraith narra uma viagem pessoal pela URSS nos anos 1960. A economia, por assim dizer, voava em termos de investimentos e alocação de recursos. A URSS estava à frente dos EUA, por exemplo, na disputa tecnológica espacial. Toda a indústria comunicacional americana e européia (internet, celular, etc.), principal fonte do investimento capitalista hoje, tem origem nas pesquisas e desenvolvimentos do complexo industrial militar e depois se reconverteu a economia civil. A Perestroika, projeto de reforma econômica de Gorbachev, resultou num desastre na tentativa de reconversão. A economia de guerra soviética apresentava dificuldades intransponíveis de transitar para a economia civil.



Neste ínterim, vem ao caso de intrometer o veredicto de Gramsci a propósito dos novos regimes societários, surgidos no começo do "curto" século XX na Europa, que também serve na abordagem dos regimes da periferia. Os novos regimes reinaram por algum tempo, mas findaram soçobrando. Conforme o pensador comunista italiano, depois de um primeiro estágio de ânimo regenerativo das estruturas da sociedade seguiu-se estrago e desgraça. Ou seja, nem fascismo (por ele estudado a fundo), nem nazismo, perfilavam respostas consistentes de longo prazo à crise do Estado liberal clássico e da economia capitalista. Em interessante diagnóstico, ele considerava os consideravam, no essencial, “desenvolvimentos intermediários” entre o americanismo e o sovietismo que despontavam. Havia o esforço de correntes modernizadoras internas do fascismo, a exemplo do “corporativismo italiano”, que fazia campanha para introduzir os “métodos americanos” de produção nas fábricas, mas eram esforços minoritários.



Logo fascismo e nazismo mostrariam irremediavelmente as suas fragilidades, pois eram, por mais que mobilizassem amplas massas, mais representantes da velha Europa “improdutiva” e pequeno-burguesa que prenunciadores de uma nova estrutura de hegemonia de longo prazo. Superexploração e rigidez de circulação territorial e compulsória da força de trabalho (biopoder absoluto!), instrumentos fartamente utilizados por Hitler, por mais que durem, constituem fases passageiras do capitalismo. Fascismo e nazismo – padeciam de um defeito congênito: a reprodução econômica dependia totalmente do Estado, nele incrustando-se, além do elemento parasitário, outro destrutivo (o aparelho militar). Parafraseando livremente uma passagem brilhante de Ernest Mandel em “O capitalismo tardio”, em rápido trecho de análise da economia política do nazismo, cedo ou tarde (até mesmo se fosse vencedor da guerra) os nazistas teriam de fazer a sua Glasnost (abertura política) e a sua Perestroika (abertura econômica). Tal como tentou Gorbachev nos estertores da União Soviética, seria imprescindível haver nesses dois países uma reconversão dos investimentos para o setor civil, dinamizando um tipo de iniciativa econômica, vinda de baixo, que se tornou, com o tempo, politicamente incontrolável pelas rígidas estruturas de comando de um Estado superficialmente forte.



A análise política de Gramsci (que morreu em 1937) previu genialmente o desfecho da Segunda Guerra Mundial, repetindo com mais fundamento a mesma proferia de Tocqueville nas páginas finais de “A democracia na América” (2000). Para o italiano e o francês, os futuros do mundo, os dois desenvolvimentos antagônicos fundamentais, germinariam fora da velha Europa Ocidental. Os dois desenvolvimentos antagônicos do século XX seriam o americanismo/fordismo e o regime dos sovietes.



O veredicto de Tocqueville - um grande intelectual liberal-conservador francês do século XIX - não chegava a ser uma premonição inédita. Parcela expressiva da inteligência européia (Weber, Freud, Lenin, etc.), em plena Belle Époque e Primeira Guerra Mundial, já escrutinavam atentamente os enigmas societários novos engendrados nos Estados Unidos e na Rússia. Seguindo anonimamente a vanguarda da intelectualidade européia, na juventude de 27 anos (1918), Gramsci dizia o seguinte: “na conflagração de idéias provocada pela guerra, duas novas forças emergiram: o presidente americano Wilson e os maximalistas russos. Eles representam os extremos de uma corrente lógica das ideologias burguesas e proletárias”. Certamente, Tocqueville pensava na espada dos Romanov; Gramsci pensava nos coletivos de sovietes.



Mais tarde, quando da redação dos “Cadernos do Cárcere” (1929-1935) o veredicto juvenil e impressionista vai se sofisticar numa visada estratégica universal, tendo em conta as relações de força (internacionais e internas). Entram em causa, no escrutínio dos dois regimes contendores a questão da hegemonia, da sociedade civil e o corolário da revolução passiva.




Campo de Ensaio


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