terça-feira, 2 de maio de 2017

Luta de classes, século XXI



Zygmunt Bauman avisou, apoiando-se em Gramsci: a democracia torna-se cada vez mais oca, quando a aristocracia financeira impõe seu poder e resta à sociedade participar de eleições cosméticas

Gustavo Henrique Freire Barbosa

“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos”, escreveu Antonio Gramsci durante o longo período em que ficou encarcerado na prisão de Tudi di Bari, na Itália.




Sobre os dizeres do pensador italiano, escritos entre os anos 1920 e 1930, Zygmunt Bauman sugere que a atual situação do planeta corresponde a um novo interregno. O velho, assim, estaria morrendo, de maneira que se encontraria moribunda a antiga ordem baseada no entrelaçamento entre o território, o Estado e a nação enquanto referências de organismos operacionais soberanos. Neste contexto, a prevalência do capital financeiro e a transnacionalização das relações econômicas, características fundamentais da globalização, vêm sucessivamente transferindo os núcleos de decisão política dos Estados nação para entidades internacionais como o FMI e a Comissão Europeia. Tais entidades, no afã de atingir seus predatórios objetivos de acumulação, adotam como modus operandi a sistemática subjugação de soberanias nacionais e a incontida subversão de ordenamentos jurídicos, conseguindo escapar do princípio clássico de que “aquele que governa tem o poder e faz as leis”.



Eis onde se encontra, conforme refletiu Gramsci, o nascituro impossibilitado de sair do ventre: os organismos políticos herdados de tempos anteriores à globalização vêm se mostrando inadequados e insuficientes para lidar com uma realidade na qual as novas formas de organização política e econômica escapam do controle local por meio de leis e da própria Constituição. Veja-se o recrudescimento das medidas de austeridade aplicadas no Brasil, consagradas com a PEC da previdência e com a mais recente aprovação da PEC 55: para atender aos reclamos do rentismo internacional, comprometeu-se a normatividade de uma série de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, restringindo, assim, o aporte de recursos imprescindíveis para as suas concretizações. Munidos da tecnocracia vulgar, ignoraram as alternativas palpáveis ao arrocho fiscal e optaram por seguir à risca a cartilha da espoliação pós-moderna, na qual recursos são drenados para o mercado financeiro ao completo arrepio dos mecanismos de controle e dos objetivos programáticos encartados no texto constitucional.



Assim, toda a estrutura decisória que fundamenta esta nova ordem global passa a gravitar em torno das corporações internacionais, deixando um “déficit democrático” nos parlamentos, governos e instituições voltadas à participação popular direta, de maneira que as expressões de uma democracia eficaz costumam ser vistas com manifesta desaprovação. Basta atentarmos para a histeria com que foi recebido o Decreto nº 8.243/2014, que visa instituir a Política Nacional de Participação Popular na gestão pública, e as paradigmáticas experiências da Argentina, Equador e Eslovênia: enquanto os credores internacionais encararam com preocupação o fato dos países latino-americanos terem, em momentos diversos, demonstrado condições de saldar suas dívidas, preocupando-se com a possibilidade da liberdade econômica e a independência financeira adquiridas serem usadas para rechaçar a aplicação de medidas de austeridade, a suprema corte eslovena impediu a realização de um referendo constitucional convocado contra as imposições do mercado financeiro. Alegou que colocaria em perigo outros valores constitucionais que deveriam ter prioridade em uma situação de crise econômica. Que valores são estes? Os oriundos da racionalidade das autoridades financeiras internacionais que pressionavam o país europeu para que adotasse o austericídio que vêm destruindo nações como o Chipre, a Grécia e a Espanha.



Falar de um livre mercado nestas circunstâncias é uma piada de péssimo gosto, concluiu Chomsky em uma de suas entrevistas ao jornalista David Barsamian compiladas no livro A Minoria Próspera e a Multidão Inquieta. Sua declaração faz total sentido no momento em que é completamente estranha ao mapeamento cognitivo dos think tanks liberais a compreensão de que a verdadeira liberdade está indiscutivelmente ligada à efetiva soberania nacional, livre de pressões e ameaças. A abertura de canais para interferências externas na autodeterminação dos Estados nacionais, cuja desregulamentação é vista com satisfação pelos ideólogos do neoliberalismo, é tida por estes como uma expressão da “liberdade econômica” ainda que se trate de um descarado atentado ao poder e a liberdade das nações decidirem seus rumos conforme os interesses do que Rousseau definiu como “vontade geral”. Não assusta que o economista Friedrich Hayek, referência intelectual da apologética globalitária, tenha afirmado em uma reveladora visita ao Chile de Pinochet que sua “preferência se inclina na direção de uma ditadura liberal, ao invés de um governo democrático que não pratique o liberalismo”.



No artigo “O mundo da ordem”, publicado em setembro de 1984 na Folha de S. Paulo, Marilena Chauí afirmava que a perenidade do pensamento conservador autoritário no Brasil apoia-se não apenas no conjunto das instituições e práticas sociopolíticas, mas também na interiorização de certas imagens. Uma destas imagens é a peculiar visão que se tem da luta de classes, que aparece simplesmente como um confronto armado provocado pelo andar de baixo contra o andar de cima da sociedade. Esta perspectiva reducionista da insolubilidade de interesses entre classes sociais não consegue observar que o conflito gira, sobretudo, em torno da conservação das formas de dominação através das instituições, leis e costumes. Os embates por maiores fatias do orçamento geral – hoje destinado quase em sua metade ao pagamento de juros e amortização da dívida – e contra a drenagem de recursos públicos em favor do mercado financeiro, por exemplo, correspondem a claras manifestações das lutas de classes, pois englobam postulações inconciliáveis acerca de quem o Estado deve servir. Ademais, se problemas globais requerem soluções globais, está correto o bilionário norte-americano Warren Buffet quando reconhece que “claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos, que está vencendo.”



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