quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Sobre governos e casas...

André Perfeito

Eu não sei vocês, mas eu aprendi que um trabalhador gasta o que ganha, e um empresário ganha o que gasta...

Essa insistência de alguns economistas em dizer que o governo é como uma casa (uma família) pode servir bem como argumento retórico, mas no geral é errado, isso para não dizer que é uma falácia lógica.


Uma família não se auto-emprega, não cria dinheiro. Se fosse fazer uma analogia o correto seria comprar o governo a uma empresa. Uma empresa tem que manter as contas em ordem, mas se o dono da empresa chega a cortar até no cafezinho para se manter de pé há algo ali profundamente errado. A questão nesse ponto não é mais onde cortar, mas sim como faturar mais.



Talvez o mercado que essa empresa esteja tenha estagnado, ou que sua mercadoria não seja boa, ou que apareceram novos concorrentes... Enfim, pode ser muita coisa.



O dono de uma empresa numa situação que nem esta se insistir em cortar no cafezinho apenas irá prolongar a dor de uma morte lenta.



Se espera de empresário a capacidade de empreender, de se lançar no futuro e assim criar o futuro.



Keep walking, dizem...



Não quero dizer com isso que o governo brasileiro não tenha que racionalizar seus gastos e colocar metas para avaliar seus programas, afinal quão mais eficiente for mais leve poderá andar para continuar a investir e assim criar o futuro.



Falar que o governo é como uma casa encontra respaldo numa sociedade que, como disse Sérgio Buarque de Holanda (o pai do comunista do Leblon), não conseguiu separar o Estado da Família. Onde nessa confusão de "tudo junto e misturado" criamos a cordialidade como ética e o jeitinho como estratégia. Afinal num país onde a economia não cresce todos têm que ficar amigos do Rei e sua corte.



É como um pai dizendo: enquanto você estiver nessa casa mando eu; e logo após sistematicamente sabota possibilidades de emancipação dos seus filhos para mantê-los por perto através de um amor morno e ressentido.



Talvez por isso mesmo o Brasil seja um país tão grande...



Não, um governo não é como uma casa. Quem repete isso exerce, consciente ou inconscientemente, o pior tipo de paternalismo possível, uma vexatória tradição brasileira que vê no clientelismo sua expressão mais bem acabada no mundo dos negócios.



Para fazer negócios no Brasil antes tem que se fazer amigo. Isso é típico de uma sociedade onde a independência do indivíduo é apenas uma simulação, onde todos fazemos parte de "uma grande família" desde a senzala e a casa grande.



"O vosso mal amor de vós mesmos fez da solidão um cativeiro" diria Nietzsche citado por Holanda.



Mais que isso. Nós somos também cristãos demais. Ao invés de termos com exemplo a força de Cristo ressuscitado e a mensagem de redenção que isso nos traz (afinal o pecado foi vencido), preferimos ele pregado na cruz e sentimentos de culpa, culpa essa que precisa da máscara religiosa para não enfrentarmos.



E do que sentimos culpa? A culpa está ali, jogada na rua ou vendendo chiclete. No brejo da Cruz. Sabemos que a miséria e a desigualdade são responsabilidade nossa, mas para não termos que lidar com a angústia que isso nos traz dado a ambivalência do sentimento de ser bom ter privilégios e é ruim vermos a dor do outro, nos rendemos de bom grado a penitência religiosa; tudo para não vermos o óbvio inconsciente dessa sociedade solar que é a brasileira...



Por qual outro motivo conseguiriam vender que fazer um ajuste recessivo, no meio de uma recessão, faria o país crescer? Porque magia sinistra poderia conseguir ludibriar o mais banal exercício lógico?



Só se faz isso através da culpa ativada pela angústia de não querermos reconhecer o quão absurdamente desigual e violento é esse país.



Por isso a Ordem e Progresso estampado na bandeira é como a tatuagem de âncora num braço de um machão. Um símbolo de algo que busca esconder, mas sabe que está lá no fundo do mar inconsciente...



A vida econômica é essa troca constante, uma interconexão incessante. O liberalismo rasteiro de hoje é perverso pois perverte o sentido radical da liberdade que é fato de podermos ter escolhas em sociedade. Isso aqui não é uma guerra de todos contra todos, mas uma construção coletiva, um esforço da espécie humana em se desenvolver e desenvolvendo as forças materiais da economia criar assim novas formas de exercer a liberdade numa experimentação maior do que podemos ser.



A arte, a ciência o amor são bens coletivos, parte desse esforço em sermos maiores e quem sabe até divinos.



Esse café pequeno do liberalismo atual se foca no consumo como expressão da sociabilidade de indivíduos autônomos. Isso talvez seja apenas mais um truque diabólico...



Estamos conectados e a verdade é que se não aumentarmos a demanda, se não incentivarmos a circulação, todos iremos perecer.



Isso não é consumismo, é apenas reconhecer que precisamos fazer a máquina girar para a existência fazer sentido para além do econômico.



Como diz a placa, resumindo a perfeição o preceito keynesiano de Demanda Efetiva: coma aqui ou nos dois vamos morrer de fome. O dinheiro tem que circular como uma energia livre, não para ficar sobre-investido em alguns poucos conteúdos.



Não, um governo não é uma casa.



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