quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Atribuição da filosofia em momentos como este é acelerar o desabamento

Vladimir  Safatle

Nestes tempos de horizontes mundiais incertos e realidades políticas brutalizadas, é comum em palestras que profiro alguém perguntar sobre como a filosofia poderia nos auxiliar para nos sentirmos melhores. Esta é uma pergunta que parece aceitar de bom grado que o discurso filosófico teria alguma forma de função terapêutica a ser ouvida, principalmente em momentos de crise.



De fato, a pergunta não é estranha se lembrarmos da experiência social da filosofia nos últimos anos entre nós. Durante certo tempo, as livrarias brasileiras foram invadidas por títulos do calibre de "Mais Platão, Menos Prozac" ou "Schopenhauer e a Arte de Viver Bem".


Como se o lugar do discurso filosófico fosse em algum ponto entre a prateleira de autoajuda e seção de livros clássicos. Falava-se algo sobre a "verdadeira felicidade", fazia-se uma crítica genérica ao curso do mundo, ao mundo em que tudo é mercadoria, aos "falsos prazeres".


Assim, encontrava-se um lugar para a filosofia na agenda das preocupações do dia. Daí a pedir que a filosofia funcione como um grande depositário de fórmulas de consolação foi um passo não muito longo.


Bem, se me permitirem, eu teria a tendência inversa. Gostaria de dizer que, se o discurso filosófico tem alguma função em momentos como este, é o de acelerar o desabamento, e não servir de síndico de prédios abandonados e arruinados.


Se Hegel um dia afirmou que o caminho da formação da consciência era o caminho do desespero, não foi um acaso. De certa forma, não é errado dizer que a filosofia, em seus setores mais avançados, foi, desde seu início, um regime de discurso constituído para permitir às sociedades criticarem as estruturas normativas que procuravam se fazer passar por representações naturais –estejam tais estruturas no campo das expectativas cognitivas, morais, estéticas ou na reflexão sobre a natureza da vida social, entre tantos outros.


Por isso, o maior antípoda do discurso filosófico sempre foi o senso comum e seu sistemas de pressuposições que se colocam como evidências. O senso comum quer que continuemos a pensar como pensamos, enquanto o discurso filosófico lembra que não é mais possível pensar da maneira como pensamos até agora. Quer dizer, a razão de ser do discurso filosófico sempre foi orientar as possibilidades da crítica, sempre foi apontar para o que é ainda uma latência da existência.


No entanto, é certo afirmar que a filosofia sempre foi o discurso daqueles que amam o que é ainda uma mera impossibilidade.


Para alguns, isso pode passar por exercício ocioso, mas outros lembrariam que tudo o que realmente fomos capazes de produzir foi impossível algum dia. Impossível é apenas o que não pode ser pensado na situação atual, mas há sempre aqueles que lutam com todas as forças para levar os sujeitos a acreditarem que, fora da situação atual, só haverá o caos, o terror, a catástrofe. Há os que se especializaram em paralisar pessoas através do medo. Que eles sejam bem pagos.


Nesse sentido, não é um acaso que o discurso filosófico se fortaleça exatamente quando as sociedades nas quais ele aparece começam a entrar em colapso. Ele é uma sismografia dos abalos que ocorrerão mais tarde. Assim, a filosofia das luzes (Rousseau, Voltaire, Diderot) foi o prenúncio do colapso do sistema absolutista, e não sua expressão.


O idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel) foi gestado em um país retardatário e em luta contra seus arcaísmos. Nesses casos e em tantos outros, o discurso filosófico não apareceu como reflexo de uma época, mas como estratégia do espírito do tempo para levar uma época determinada mais rapidamente ao seu ponto de desabamento.


Lembrar disso é uma maneira de responder àqueles que anseiam por esquemas práticos o mais rápido possível. Como dizia à sua maneira Heidegger, muitas vezes agimos para não pensar. Ou seja, fazemos de tudo para novas questões não aparecerem, nem novas maneiras de responder a velhas questões.


Assim, podemos continuar a agir produzindo os mesmos erros de sempre. Uma ideia, ao contrário, é sua força de enunciação e a internalização do movimento de seus erros. Não houve ideia verdadeira alguma que não tenha começado errando.


Folha SP



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