sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Golpes

Um dos maiores aprendizados para as pessoas que pesquisam a memória do holocausto, como eu fiz e faço, é a dificuldade em representar o testemunho de quem passou por ele, como minha mãe e, sobretudo, falar no lugar de quem testemunhou. 

São várias as questões éticas e representacionais tanto para a testemunha como para o seu assim chamado "porta-voz": que direito tem o sobrevivente de ter sobrevivido?; tendo sobrevivido, como esquecer se é preciso lembrar?; como lembrar-se se ele só quer esquecer?; como falar, se aquilo que ele viveu é irrepresentável e muito poucos estão dispostos a ouvi-lo?; como ser o porta-voz de algo que não é transferível?; como dizer a experiência da catástrofe de outro?; como não dizê-lo?

Bem, tudo isso para dizer que são essas as mesmas questões - embora trate-se, é claro, de experiências muito distintas - que me vêm à mente no dia de hoje, enquanto escrevo este texto: dia 31 de agosto de 2016. 

Por uma coincidência que poderia ser chamada de "eterno retorno do mesmo", foi nesse mesmo dia que houve outro golpe há 52 anos.A palavra "golpe" é mesmo excelente para significar a perplexidade que sinto, que todos sentimos. 

O golpe vem de chofre, despenca, por assim dizer, sobre aquele que o recebe. Ele derruba, como um golpe no boxe. Ele sobrevém, assalta, acomete e quem passa por ele o sofre. O golpeado é passivo: pá. E a passividade de quem recebe o golpe, de quem é submetido a ele gera uma dor dupla, potencializada: a dor do baque e a dor da impotência provocada pela passividade. 

Não basta a derrota, ainda é preciso amargar a impossibilidade total de agir, porque todos os caminhos estão trancados. Sabemos as rotas, conhecemos os desvios, os atalhos, mas estamos encravados em portas sucessivas e absurdas de fechaduras intransponíveis. 

Como diante de guichês que nos pedem assinaturas carimbadas, autenticações e ofícios quando acabamos de perder alguém querido, mas que não podemos recusar, sob pena de, com isso, atrasar o enterro, assistimos também ao espetáculo se desenrolar feliz à nossa frente, sem que possamos sequer acenar, roçar uma palha para modificá-lo.É essa a sensação do irrepresentável. Nada é capaz de dizer o golpe engolido à força. Ele fica entalado no mutismo que tudo quer, mas nada pode. E se assomam novamente as questões de representação: "preciso dizer, mas de que adianta dizer? preciso dizer, mas como posso dizer? quem quer me ouvir, se só me ouvem os que comigo concordam? como chegar em quem discorda de mim? mas preciso, quero chegar até eles? como posso gritar? quem tem direito de falar? preciso de líderes? como transcendo minha impotência?" e tantas outras perguntas afogadas, mal chegam à garganta.

Sofrer um golpe, em todos os sentidos da palavra, é ver-se diante da representação do irrepresentável.E como com as testemunhas de catástrofes, com as quais, afortunadamente, ainda não podemos nos comparar, no início a sensação é de interdição completa. Desejo de sucumbir e impossibilidade de nomear.Mas, também como com eles, o tempo e a memória agem devagar e o golpe, já sofrido, passa a se transformar. Vira escrito, expressão, generosidade, diários, cartas, amores. 

A distância possibilita a palavra, a compreensão e a impotência arrefece. Só pensar em como dizer já é uma forma de dizer e só pensar em dizer já é escapar do impossível, do sufocado. Dizer que não se pode dizer é a primeira força do golpeado. Ele grita: "ninguém me ouve! não sei falar o que sinto!". Ele fica burro, incapaz, gago. Mas essa gagueira é sua voz e é ela que o ajuda a construir a memória, engenho da recuperação e da potência.

Fomos golpeados. Estamos no chão, junto com a democracia, sonho de gerações. Como testemunhas, estamos atônitos. Mas a força que nos atirou no chão, como a de um tapa, é a mesma com que vamos reagir, a princípio gagos, vazios. Mas à medida que cada um conquista sua pouca voz, vai reconhecendo sua língua, vai costurando sua memória, vai contando sua história.

Vamos narrar o impossível, amigos. Vamos transformar nossa impotência em histórias, em estórias e tomar posse da palavra para podermos transformar o golpe de luta em golpe de ar.


Pessoa

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