segunda-feira, 18 de julho de 2016

Safatle: Quando as ruas queimam: sobre a constituição de sujeitos políticos

Vladimir Safatle

Em Brasília, manifestantes ocupam a cúpula e o gramado do Congresso Nacional durante as manifestações de junho de 2013

Haveria de chegar um tempo no qual as ruas começariam a queimar. Desde 2008, elas queimam nos mais variados lugares. Em Túnis, em São Paulo, no Cairo, em Istambul, no Rio de Janeiro, em Madri, em Nova York, em Santiago, em Brasília. Elas ainda queimarão em muitos outros e imprevistos lugares, recolocando o que é separado pelo espaço em uma série convergente no tempo. Por mais que alguns procurem se convencer do contrário, por mais que agora o fogo pareça ter se retraído, as ruas não pararam de queimar desde então, elas só deslocaram suas intensidades. É importante lembrar disso, pois há algo que pode existir apenas quando as chamas explodem em uma coreografia incontrolada de intensidades variáveis. Por isso, diante de ruas queimando não há de se correr, não há de se gritar, há apenas de se perguntar: o que fala o fogo? O que se diz apenas sob a forma do fogo?

Quem ouvir o fogo queimar nas ruas perceberá que ele diz sempre a mesma coisa: que o tempo acabou. Não apenas que não temos mais tempo, mas, principalmente, que não há mais como contar o tempo que está a nascer como uma possibilidade mais uma vez presente. Um tempo que não se conta mais, que não se narra mais, que não se habita mais tal como até agora se habitou. Esse tempo produzirá suas narrativas e seus habitantes e queimará o tempo no qual narrávamos e habitávamos e contará com números que não conhecemos e terá tensões que não saberíamos como deduzir e despossuirá e não será mais medido como instante ou duração e será outro ao fim e ao cabo.

Quem ouvir o fogo perceberá que ele também diz outra coisa: que não há mais lugar. Em 2013, quando, no Brasil, as ruas começaram a queimar, uma jornalista entrevistou um manifestante. Ao final, ela perguntou seu nome: "Anota aí, eu sou ninguém". De fato, a frase não poderia ser mais clara. Como um Ulisses redivivo diante do gigante Polifemo, que agora parece vir de todos os lados, ele encontrou na negação de si a astúcia maior para conservar seu próprio destino.

Por mais paradoxal que possa inicialmente parecer, "Eu sou ninguém" é a mais forte de todas as armas políticas. Pois quem controla o modo de visibilidade e nomeação, controla o que irá aparecer e como os circuitos de afetos se construirão. Por isso, a negatividade sempre foi uma astúcia daqueles que compreendem que a liberdade passa pela capacidade de destituir o Outro da força de enunciação dos regimes de visibilidade possíveis. "Eu sou ninguém" é, na verdade, a forma contraída de: "Eu sou o que você não nomeia e não consegue representar". Para existir, é necessário fazer a linguagem encontrar seu ponto de colapso. Nós somos apenas lá, onde a linguagem encontra seu ponto de colapso. Na verdade, existir é colocar em circulação um vazio que destitui, uma nomeação que quebra os nomes. Se me permitirem, é necessário ser um sujeito antipredicativo.

URGÊNCIAS

Contra esse tempo e esse espaço, o poder inventa todas as formas de urgências, de ataques terroristas, de crises econômicas, de violência estatal. Ele exige uma solidariedade à situação atual forjada no medo e no gozo. Poucos são os que aderem à situação atual a partir de uma ética da convicção; a grande maioria adere simplesmente sem crença. O que não poderia ser diferente, já que o poder atual baseia-se na mobilização contínua da ausência de saída, da ausência de escolha. Sua lógica é a lógica do sufocamento. Essa é uma das mais miseráveis ironias de nosso tempo: um regime que prega a livre-escolha legitima-se através da insistência contínua de que não temos escolha.

Não há outro caminho, diz o mantra dos economistas-jornalistas, consultores de sistema financeiro especializados em se salvar na base do assalto ao dinheiro público. E só há uma forma de levar as pessoas a acreditarem não ter escolhas: há de se gerir e produzir continuamente o medo, gerir situações de emergência que se tornam regra, criar um regime que se sustenta na contradição de ser, ao mesmo tempo, liberal e militarista, permissivo e restritivo, que prega a liberdade individual mas que grampeia seu telefone. Um regime que invade sua privacidade em nome de sua segurança.

Por isso, ele necessita que ataques terroristas reverberem no mundo inteiro, com imagens se repetindo obsessivamente, comentadas por jornalistas com seu espanto ensaiado, para afinal alimentar mais ataques com essa promessa tácita de sucesso de audiência, para arrastar todos os que caíram sob a lógica do ressentimento social à promessa de fim do anonimato e de protagonismo encarnado no papel principal na cena mundial.

O gosto macabro pela visibilidade de eventos de violência espetacular é apenas a prova da necessidade contínua de catástrofes e de circulação de insegurança como prática de governo. Como já dizia Durkheim, e isso nossos governos sabem bem, o crime não é uma patologia social, mas um dispositivo fundamental para o fortalecimento da coesão. Por isso, nunca houve e nunca haverá sociedade sem crime. Através do crime, a sociedade fortalece seu sentimento de unidade contra o dano sofrido, ela volta à vida por ter um risco de desagregação à espreita. Ela precisa do crime. Na governabilidade atual, o crime não é algo que se combate, ele é algo que se gerencia. Tudo fica mais fácil quando o governo se reduz a um gabinete de crise. Isso talvez nos explique por que nossa época passará à história exatamente como o momento em que a crise, em todas as suas formas, virou uma forma de governo. O ideal do neoliberalismo é transformar a prática de governo na gestão de um gabinete infinito de crise.

Isso é facilitado pelo fato de o neoliberalismo ser, mais do que uma doutrina econômica, um discurso moral. Sua necessidade se impõe a nós como uma injunção moral, como uma moral baseada na coragem enquanto virtude. Coragem para assumir o risco de viver em um mundo no qual só se sobreviveria através da inovação, da flexibilidade e da criatividade. Assumir riscos no livre-mercado aparece atualmente como a expressão maior de maturidade viril, como saída da minoridade a que estariam submetidos aqueles pretensamente infantilizados pela demanda de amparo do Estado-providência. Esse mantra leva os sujeitos a acreditarem que, se eles fracassaram economicamente, é por culpa absolutamente individual, por culpa de sua incapacidade de se reinventar, de se "reciclar", como uma garrafa PET.

Enquanto essa moral do risco simulado era brandida em voz alta, dois economistas italianos (Guglielmo Barone e Sauro Mocetti) divulgaram em 2016 um sintomático estudo mostrando como o sobrenome das pessoas ricas em Florença são, em larga medida, os mesmos de 1427 a 2011. Certamente deve ser pelo mérito e pela capacidade que essas famílias tiveram de educar seus filhos para terem coragem diante do risco. Até porque, diante da primeira crise, o Estado irá salva-los, como salvou o Citibank, o BNP/Paribas, o Deutsche Bank e a tanto outros durante séculos. O que se diz atualmente é: contra esse patrimonialismo explícito travestido de "mérito", contra esse rentismo que se faz passar por "coragem", não há escolha.

Há de se ter clareza desse ponto para compreender um paradoxo aparente. Costumamos acreditar que de todo acontecimento emerge um novo sujeito político. Mas nosso tempo tem mostrado como todo acontecimento produz também múltiplos sujeitos que procuram, com todas suas forças, negar que o tempo acabou e que o lugar implodiu. Eles se servem da abertura produzida pelas chamas que queimam nossas ruas para usar o fogo na caldeira que cozinha o festim de sentimentos reativos com seus golpes brancos, suas fronteiras, suas bandeiras nacionais, sua ressurreição de arcaísmos. Foram esses golpes e essas fronteiras e essas bandeiras e esses arcaísmos que nos fizeram perder até agora e inocular melancolia em alguns daqueles que poderiam estar no campo de batalha. Mas lembremos a eles de forma clara e segura: nós nunca fomos derrotados.

É verdade, nós perdemos várias vezes, mas nunca fomos derrotados. Pois nossas derrotas são, na verdade, o fogo alto que forja o aço de nossas vitórias. Toda verdadeira vitória é fruto da elaboração profunda sobre perdas. Ela reverbera o desejo animal de nunca mais perder. Por isso, só vence quem caiu e clama com paciência por uma segunda chance. Ela virá, mais cedo do que esperamos. É isso que nos leva a afirmar que tais perdas não são derrota alguma. Talvez o traço mais sublime e incompreendido da filosofia hegeliana seja a certeza de que as feridas do Espírito são curadas sem deixar cicatrizes. Isso significa muita coisa, entre elas que nada, absolutamente nada, terá a força de bloquear definitivamente a possibilidade de realizarmos nosso destino. Há momentos em que esse destino fala baixo, mas ele nunca se cala, e é isso o que importa.

No entanto, é certo que nada nos exime de nos perguntarmos por que nossas perdas têm sido tão constantes nos últimos tempos. Por que as ruas estão queimando desde 2008, por que nossas ruas queimando desde 2013 não produziram ainda as transformações que poderiam produzir? Por que essa força efetiva da reação? Várias são as razões que poderiam ser levantadas, mas talvez seja o caso de se deter diante de uma delas. A saber: porque não temos mais um corpo e não há, nem nunca haverá, política possível sem corpo.

Se quisermos voltar a vencer, precisaremos de um corpo. Teremos que aprender a dizer, como David Cronenberg: "Vida longa à nova carne". Insurreição não é emergência. Uma insurreição não é necessariamente a emergência de um novo sujeito político. A insurreição pode ser a explosão bruta da revolta, mas, para que essa revolta forje um sujeito emergente,é necessário ainda mais um esforço. Só mais um esforço, se quiserdes ressoar a emergência.

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