segunda-feira, 13 de junho de 2016

"A crise política rasga o véu da fantasia ideológica e mostra não algo que se desconhecia, mas aquilo que não se queria saber."


O futuro da usurpação e as alternativas impensáveis: o trabalho do vento e a necessidade da tempestade
 
Mauro Luis Iasi.

“Sento-me na praia e espero o vento”

Antes mesmo de completar um mês de usurpação, o usurpador tem problemas. Sua ponte balança fortemente acossada pelos ventos de denuncias e o futuro, logo ali do outro lado do abismo, parece uma visão distante.

Um ministro atrás de outro vai caindo ou sendo envolvido em escândalos, os que se mantêm ostentam uma ficha corrida de fazer inveja a qualquer quadrilha e o próprio usurpador é condenado, tornado-se inelegível por oito anos (dois dos quais espera passar no cargo maior de mandatário da República).


O futuro da usurpação

Na sanha de afastar a presidente eleita, os conspiradores prometeram o que não podem entregar: a estabilidade. Primeiro porque, ao contrario de suas pretensões, a raiz da instabilidade é a crise econômica e o remédio amargo dos “ajustes”, que o governo anterior já aplicava e o usurpador impõe com mais profundidade, não indicam uma recuperação milagrosa no curto prazo. As previsões já afastam a recuperação em 2017 e projetam a volta de um crescimento pífio só para 2018. Em segundo lugar, o bloco usurpador está longe de ser homogêneo. A mídia que tão convictamente apoiou com boa vontade a aventura usurpadora tenta se apresentar agora como surpresa com aquilo que sempre soube muito bem. O judiciário divide-se, a operação Lava Jato continua a oferecer denuncias, o Ministério Público continua indiciando e o STF continua se fingindo de morto.

O preço da interrupção do mandato da presidente é pago com um custo considerável. Liberação de recursos, nomeações, barganhas, acordo para livrar Cunha da cassação, acenos ao obscurantismo de valores e o fundamentalismo dos preconceitos, fechamento de ministérios para depois reabri-los sem recursos. Ministros vaiados em público e um precário reconhecimento internacional que se dilui numa consistente percepção da ilegalidade do ato usurpador.

Estamos diante de um governo provisório ilegítimo e instável. Os ex-governistas querem a volta da presidente, os aliados do usurpador disputam entre si o protagonismo em uma nova fase de crescimento que virá, os trabalhadores reagem, ainda desordenadamente, contra a brutalidade do “ajuste”, e disso tudo resulta que a instabilidade é a regra e nada indica que tal quadro se reverta no curto prazo.

O ajuste, no entanto, não espera a estabilidade política. Ao contrario do que se apregoava, ele vai se implantando no próprio curso da tempestade. Começou ainda no governo interrompido, seguiu por entre a crise do afastamento da presidente e seguiu no governo usurpador indiferente aos percalços políticos que o abalam. Enquanto a esfera política decide quem governa, o capital exerce seu direito ao Estado e impõe a direção necessária.

No entanto, isso tem consequências. É essencial ao jogo político burguês que o governo de plantão assuma o ônus de uma crise para que a oposição no interior da ordem se apresente como alternativa. Assim alternam-se liberais e conservadores, democratas e republicanos, socialdemocratas e democratas cristãos, tucanos e petistas. A atual crise política, por uma espécie de irresponsabilidade daquilo que Sofia Manzano denominou corretamente de “lumpem-parlamentares”, acabou por queimar na fogueira dos interesses da pequena política a própria aparência de respeitabilidade em que se sustentava a frágil fantasia ideológica sob a qual se legitima o jogo político burguês.

Quando um ataca o outro, o outro ataca o primeiro e todos se atacam torcendo os limites da legalidade ao sabor de conveniências e oportunismos. E o povo aqui de fora olha e vai formando a incômoda convicção que todos estão certos ao se acusarem mutuamente de canalhas e ladrões. A fantasia ideológica supõe que as pessoas tecem uma forma que lhe serve de mediação entre elas e a realidade objetiva, como afirma Žižek, não como uma mera falsidade, mas como uma ilusão necessária. Nas palavras do filósofo esloveno: “não é simplesmente uma mentira, mas uma mentira vivenciada como verdade, uma mentira que pretende ser levada a sério.” (Žižek, S. “Como Marx inventou o sintoma?”. Em: Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro, Contraponto: 1996, p. 313-314).

No limite, isto significa que as pessoas sabem de fato que a esfera da política é esse campo de disputas em torno de interesses mesquinhos, em que se usa e abusa dos meios e métodos mais escusos, que há corrupção e ilegalidades, alianças oportunistas e traições várias… que os senhores deputados e senadores estão ali porque lograram constituir máquinas eleitorais, financiamentos vultosos que compensam com medidas legislativas e governamentais que respondem aos interesses de seus mecenas etc. No entanto, precisam acreditar que se trata de uma esfera do poder político, uma esfera legislativa que tem funções específicas e respeitáveis, exercida por pessoas que têm legitimidade e capacidade para tal função. A crise política rasga o véu da fantasia ideológica e mostra não algo que se desconhecia, mas aquilo que não se queria saber.

O problema não é tanto o que se revela (uma vez que a ideologia não opera aqui no paradigma do velamento) mas as conclusões que daí derivam. Se este é o jogo da política burguesa, qual seria então a alternativa? É neste ponto que as coisas ficam interessantes. Quando Aécio Neves, por exemplo, tenta capitalizar a crise em seu benefício há uma imediata recusa. O usurpador Temer gostaria de acreditar que ele seria (até por falta de opções) a alternativa… mas não é. Uma senhora magra, vinda das fileiras do povo, tenta olimpicamente se manter distante de tudo e agradar a todos, para assim quem sabe ser escolhida como alternativa. Um dia se diz contra o impedimento, em outro flerta com o golpismo. Quer ser uma alternativa para a esquerda, mas elogia o falecido ministro da Ditadura. Ama a natureza, mas precisa do dinheiro dos monopólios que a assolam. De tanto querer agradar a todos, corre o risco de não agradar a ninguém.

O governo interrompido podia ser uma alternativa. Um dia já foi. Até pouco tempo ainda era. Mas como processar a limpeza necessária e restabelecer as costuras e remendos na fantasia ideológica para reapresentá-lo como a novidade que um dia foi, como artífice de uma democracia de cooptação, como ponto médio que torna possível o pacto? A “lumpem-burguesia-parlamentar” pode ter prestado um grande desserviço à burguesia.

Eleições gerais?

Não é por acaso que setores da mídia, como a Folha de S. Paulo, assim como banqueiros conhecidos, aventam a possibilidade de antecipação de eleições gerais, curiosamente, se aproximando de uma posição que aparece na parte mais à esquerda do espectro político. O sentido mais profundo é que é necessário buscar fora do atual campo político e de sua constituição aqueles que podem recompor a fantasia ideológica necessária ao bom funcionamento das coisas. Evidente que na esquerda o significado é outro: trata-se de construir uma alternativa fora do campo burguês, que partisse dos trabalhadores, mas é aí que as coisas precisam ser diferenciadas.

Antecipar as eleições, na lógica do segmento da direita que defende esta alternativa, não implica mudar as regras e a forma das eleições que constituiu este mesmo circo que agora pega fogo, mas, simplesmente, mudar as pessoas. O mesmo jogo, com outros jogadores. A esquerda que defende esta alternativa tem que ter muito cuidado para não cair nesta armadilha. O mais provável é que eleições gerais agora, além de legitimar o impedimento como águas passadas, produziria uma representação ainda mais conservadora. Mas, o pior é que legitimaria um fundamento da fantasia ideológica, isto é, que esta é uma esfera legitima de poder e tal legitimidade resulta de uma eleição onde a vontade popular é a que prevalece.

Nossa convicção é que a atual forma das eleições – o peso do poder econômico, a condições desiguais da disputa determinadas desde acesso ao tempo de televisão, aos debates e aos recursos, o peso do controle das máquinas governamentais e eleitorais, o tratamento manipulatório da grande mídia – deforma a expressão do que poderia ser uma vontade popular. As eleições burguesas não são uma forma de garantir a expressão de uma vontade coletiva, mas uma eficiente maneira de evitar que se forme uma verdadeira expressão política daquilo que constitui a maioria da sociedade.

As alternativas impensáveis

Mas qual, então, a alternativa? Em grande medida, a eficácia da fantasia ideológica é excluir do campo das possibilidades algumas alternativas. Vejam como em 1847, às vésperas da entrada em cena da rebelião operária de 1848, um pensador conservador colocava a questão:

“A pobreza e o proletariado são as úlceras que supuram no organismo dos Estados modernos. Elas podem ser curadas? Os médicos comunistas propõem a completa destruição e aniquilação do organismo existente. […] Uma coisa é certa, se estes homens receberem o poder para agir, haverá não uma revolução política, mas social, uma guerra contra toda a propriedade, uma completa anarquia. Por sua vez, isto daria lugar a novos Estados Nacionais, e em que bases morais e sociais? Quem erguerá o véu do futuro?”

(Haxthausen, Studen ueber… Russland [1847]. Apud Hobsbawm, E. A era das revoluções – 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979: p. 321)

Notem, o proletariado é a doença e a sociedade atual é o organismo saudável, de forma que sua completa destruição resultará em “completa anarquia”. Ora, ninguém quer matar o doente para salvar a doença, logo tal possibilidade deve ser descartada. No entanto, como em todo discurso ideológico, para sua plena eficiência é necessário incluir o real para deformá-lo. É verdade que os comunistas querem destruir o “organismo existente”, assim como é também verdade que se os comunistas tiverem condições “não haverá uma revolução política, mas social” que tem por alvo a propriedade privada dos meios de produção. Mas isso, além de não poder ser feito, não pode sequer ser pensado. Se pergunta o angustiado conservador, “em que bases morais e sociais” se constituiria um novo estado de coisas? Certamente em outras bases econômicas, sociais e morais. E não podemos pensar esta possibilidade porque…? Bem… porque…? Por que, mesmo?

A ideologia opera de várias formas, mas na crise atual parece ter sido necessário conjurar um antigo fantasma. O conservadorismo e o fundamentalismo religioso não se movem apenas para estigmatizar o governo interrompido, mas, principalmente, para delimitar o campo do possível aberto ao futuro. Hobsbawm cita uma conhecida publicação católica para descrever a ideologia religiosa nos seguintes termos:

“Deem-me um povo em que as paixões em ebulição e a ganância terrena sejam acalmados pela fé […]; um povo que veja esta terra como peregrinação e a outra vida como sua verdadeira pátria; um povo ensinado a admirar e a acatar no heroísmo cristão sua própria pobreza e seu próprio sofrimento […]. Dêem-me, digo eu, um povo assim moldado, e o socialismo não será somente derrotado com facilidade, mas será impossível mesmo que se pense nele[…].

(Cilvità Cattolica II, 122, [1950], apud Hobsbawm, op. cit., p. 239)

É necessário para a ordem excluir a alternativa revolucionária do campo do possível e do pensável. É urgente conter a crise nos limites da crise política para que ela não se torne uma crise do Estado. Mas, no entanto, é este o caminho que a usurpação abre e, por isso, é fundamental que se oculte.

O problema destes senhores conservadores é que o fundamento desta possibilidade se inscreve em seu próprio campo teórico. Um dos fundamentos do campo político, como apresenta John Locke, é que o Estado se legitima na medida que há o “consentimento” dos governados. Um usurpador seria, nos termos deste autor clássico da teoria política burguesa, aquele que “entre em posse daquilo que um terceiro tem direito”, por isso, conclui que “não pode nunca ter o direito a seu favor” (LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil). Ocorre que isto acarreta segundo ainda Locke, a seguinte situação:

“Quem quer que ingresse no exercício de qualquer parte do poder por meios diferentes dos que as leis da comunidade prescreveram não tem o direito a ser obedecido, embora a forma da comunidade ainda continue reservada, desde que não é a pessoa que as leis indicaram e, em consequência, não é a pessoa a que o povo dera assentimento.” (Idem).

Numa situação como esta o povo estaria desobrigado de prestar obediência, mas pode chegar a muito mais que isso, pode levar a dissolução do governo. O pensador liberal argumenta que há uma diferença entre o usurpador e o tirano, sendo esta diferenciação localizada no fato do usurpador respeitar a lei existente ou refazer a lei sem que para isso tenha uma mandato que expresse o consentimento do povo, colocando nestes termos o assunto:

“Se um homem ou mais de um chamarem para si a elaboração de leis, sem autoridade, a que o povo, em conseqüência , não está obrigado a obedecer; e, nessas condições, o povo ficará novamente desobrigado a sujeição, podendo constituir novo legislativo conforme julgar melhor, tendo inteiramente liberdade de resistir à força aos que, sem autoridade, quiserem impor-lhe seja lá o que for.” (Idem).

Vejam, o elemento da crise que não pode ficar visível como alternativa é que as alternativas não restringem-se à escolha entre as peças existentes e na forma política que hoje prevalece. É possível, e às vezes necessário, constituir um novo poder na forma que julgarmos melhor. Locke é um filósofo da fase revolucionária da burguesia e expressa em suas ideias o chamado “direito à rebelião”, pois é isso que a burguesia fez na sua Inglaterra e fará na França em 1789: ela destruiu o organismo social existente. Mas agora isso precisa ser descartado como possibilidade. Houve história, mas não há mais, já disse Marx.

Não se trata de escolher entre as alternativas colocadas, não se trata de escolher outras pessoas pela mesma sistemática política que constituiu esta forma política que agora implode. A possibilidade que se abre é questionar se esta é a única forma possível de expressão de vontades coletivas, se esta é a única forma da política?

Nenhuma solução que mantenha a atual sistemática política e o sistema eleitoral pode ser, de fato, uma alternativa, ainda que troquem todas as pessoas envolvidas nos escândalos de corrupção por outras que irão se envolver nos próximos escândalos de corrupção. Nenhuma mudança política ou engenharia de representação eleitoral pode ser eficaz, no sentido de uma verdadeira mudança, se não tocar na base real da forma política, a sociedade cindida em interesses antagônicos e inconciliáveis de classe e a ordem capitalista fundada na propriedade privada dos meios de produção e na transformação dos bens necessários à vida em mercadorias.

A crise do poder burguês abre a possibilidade dos trabalhadores se constituírem em poder, legislarem sobre sua vida e desobedecerem ao poder governamental ilegítimo. Destruir o organismo social e reorganizar a sociedade em novas bases econômicas, sociais e morais. O preocupado conservador de 1847 termina suas reflexões angustiadas, agravadas pela dor que a úlcera proletária lhe causava, perguntando quem poderia erguer o véu do futuro, indagando que papel a Rússia desempenharia nesta trama. Sabemos que papel ela desempenhou. Ele lembra ainda um velho ditado russo que diz: “sento-me na praia e espero o vento”. Bem, acredito que já passou da hora de nos levantar e ajudar o trabalho da tempestade.

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Gostou? Leia também “O usurpador e o caminho da usurpação“, de Mauro Iasi, no Blog da Boitempo.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.


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