domingo, 7 de junho de 2015

A História da Eternidade

Luiz Zanin

Os cineastas pernambucanos cada vez mais filmam a realidade urbana do seu Estado. Com A História da Eternidade, Camilo Cavalcante rema no sentido contrário – vai ao sertão, que elege como matriz de sua reflexão sobre o tempo e as gentes. O longa venceu os principais prêmios do Festival de Paulínia de 2014, inclusive o de melhor filme.

Paulínia é um festival vagalume – acende e apaga. Um ano tem, o outro não. O de 2015 foi mais uma vez cancelado por falta de verbas. Mas, mesmo com essa intermitência, e pouco tempo de existência, Paulínia é (ou era) um dos principais festivais de cinema do Brasil. Daí a importância da premiação de A História da Eternidade no ano passado.

São três histórias entrelaçadas. Histórias femininas, basicamente, embora personagens masculinos estejam presentes em todas elas. Mas são as mulheres que dão o tom. Das Dores (Zezita Matos) é uma avó, que espera ansiosamente a visita de um neto que foi para a cidade grande e não vê há muito tempo. Querência (Marcélia Cartaxo) é uma viúva solitária. E Alfonsina (Débora Ingrid), uma adolescente, cujo maior desejo é ver o mar.

Três mulheres, portanto, de três gerações diferentes, sofrendo, cada qual à sua maneira da solidão e da opressão masculina. Em torno delas, os homens. O neto de Das Dores, Geraldo, vivido por Maxwell Nascimento, retornará de São Paulo ao sertão por motivos que a avó jamais sonharia. Querência é docemente assediada por um sanfoneiro, o cego Aderaldo (Leonardo França), mas resiste talvez porque tenha medo de sofrer. Alfonsina é atormentada pelo autoritarismo do pai, Nataniel (Claudio Jaborandy) e tem como ídolo o tio, Joãozinho (Irandhir Santos), um artista incompreendido pela família e por seu meio.

Notam-se algumas preocupações formais por parte do diretor. As três histórias são divididas em capítulos, intitulados Pé de Galinha, Pé de Bode, Pé de Urubu. A estrutura trinaria convida também para o drama clássico em três atos – apresentação, desenvolvimento, desfecho. Mas, no caso, as histórias são apresentadas de maneira alternada, um trecho de cada uma, até confluírem na conclusão comum. Essa opção em nada tira o rigor da forma.

Por outro lado, há a preocupação com a qualidade da imagem, a colocação da câmera, os movimentos, os enquadramentos. É filme que se deve ver no cinema para que toda a sua beleza visual (que alguns acharão excessiva) possa ser apreciada. A trilha sonora é do polonês Zbigniew Preisner, que compunha para seu compatriota Kieslowski (de A Liberdade É Azul, A Igualdade É Branca e A Fraternidade É Vermelha). Há também música adicional do grande Dominguinhos, a quem a obra é dedicada. A qualidade do elenco está acima de qualquer discussão.

Enfim, é um filme em que todos os elementos foram pensados e pesados. Camilo trabalhou com o que havia de melhor e, desse conjunto privilegiado, extraiu uma obra de impacto.

No entanto, mesmo sendo o conjunto muito bom, ficamos impressionados, e retemos mais na memória algumas sequências particulares. Duas delas, pelo menos, estreladas por Irandhir Santos. Numa, ele produz uma performance ao som de um sucesso dos Secos & Molhados, Fala, que toca numa antiquada vitrola portátil. Noutra, quando dá de presente à sobrinha a sua “ida ao mar”, usando recursos da imaginação. Este é, pensando bem, o momento sublime do filme, aquele, podemos dizer, da conquista desse “mar interior” que ninguém nos tira, seja um pai violento, seja uma realidade medíocre. Nesse momento, ficamos pensando se o prenome da garota não seria uma homenagem à poeta Alfonsina Storni (1892-1938)que se suicidou no mar. Mercedes Sosa compôs e interpreta uma linda canção sobre a poeta, chamada, justamente, de Alfonsina y El Mar.

Enfim, se pode dizer também que Cavalcante, embora perseguindo um ideal de beleza formal, não parece cair no engodo estetizante da “beleza pura”. Se há esse caminho das personagens femininas em direção a uma ascese, este é entrecortado de muita violência e cenas fortes, como as que envolvem relações às vezes incestuosas entre os personagens.

Mas, se o sertão volta em A História da Eternidade, não é mais como o campo privilegiado de encenação da revolta social, como foi nos tempos do Cinema Novo (em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, Os Fuzis e Vidas Secas). É um sertão mais místico, duro e seco, violento e desapiedado, mas que pode servir como cenário de redenção a almas perdidas.


Estadão 

 

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