terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Saúde e concorrência predatória



Nelson Brasil de Oliveira


Analistas econômicos têm criticado a iniciativa do governo federal de instituir uma margem de preferência de 25% para os produtos de fabricação nacional, destinados à área da saúde. Dizem eles que o elevado déficit comercial do setor não justifica tal decisão, uma vez que hoje sobram dólares no país para custear importações; que o apoio governamental à indústria farmacêutica e de equipamentos hospitalares deveria se concentrar em critérios como modicidade de preços e qualidade dos produtos; e que os recursos públicos deveriam ser investidos inteiramente na melhoria dos serviços.

A preferência para o produto nacional, consagrada nas políticas industriais de todos os países economicamente bem sucedidos, é uma forma de incentivo a setores estratégicos da indústria que vem sendo reintroduzida no Brasil desde o governo Lula, por meio da Medida Provisória nº 495, editada em julho de 2010 e convertida em lei (nº 12.349) em dezembro de 2010.

O decreto regulamentador dessa preferência na área da defesa já foi editado, e agora é a vez da regulamentação na área da saúde pública. É natural que lobbies de empresas estrangeiras e tradings da importação se movimentem para tentar bloquear esse processo, inclusive acusando de lobby quem defende o uso do poder de compra do Estado em favor da indústria nacional, como o ex-ministro José Temporão.

O argumento de que hoje não há falta de dólares no país para gastar com importações denota uma visão de curtíssimo prazo, inteiramente descompromissada com princípios de sustentabilidade da indústria e de agregação de valor ao PIB brasileiro. Esse ponto de vista menospreza, ainda, o fato de que a concessão de preferência para o produto nacional é uma política compensatória, instituída para minimizar os efeitos nefastos da concorrência predatória com produtos importados fartamente subsidiados na origem, inclusive na área cambial contra um real extremamente apreciado. Não se trata, pois, de nenhum privilégio mas, sim, de defesa comercial do país numa área socialmente sensível: a saúde pública.

Nos Estados Unidos a preferência pelo produto nacional está consolidada desde 1933, quando foi editado o Buy American Act. A China, que na última década vem substituindo os EUA como parceiro privilegiado do Brasil e concorrente agressivo no comércio internacional, vinha utilizando principalmente a sua moeda desvalorizada como instrumento de política industrial, mas há alguns anos passou a diversificar seus instrumentos de incentivo, incluindo a preferência por produtos nacionais. Por meio do seu programa Indigenous Innovation Policy, lançado em 2006, o governo chinês se obriga, entre outras medidas, a comprar produtos protegidos por patentes com tecnologia gerada na China.

A importância estratégica dos medicamentos se compara à da segurança alimentar. Tivemos um claro exemplo disso na Guerra das Malvinas, quando a Argentina teve seu suprimento de antibióticos suspenso pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos. Graças à existência de uma indústria farmacêutica no Brasil, os vizinhos argentinos puderam ser abastecidos de medicamentos essenciais naquela situação de emergência.

A ideia de que o apoio à indústria nacional na área da saúde se baseie nos critérios de modicidade de preços e qualidade dos produtos não é incompatível com a preferência pelo produto fabricado no país, bem ao contrário. Um dos fatores que motivaram as primeiras medidas de estímulo à produção farmacêutica nacional, ainda no governo Lula, foi a baixa qualidade de insumos importados da China, que vinham gerando sistemáticos prejuízos para laboratórios públicos como Farmanguinhos/Fiocruz, por conta da necessidade de reprocessamento local. O que garante a qualidade do produto é a fiscalização do comprador, e o governo, seja através da Anvisa ou do Ministério da Saúde, tem melhores condições de fiscalizar os produtos que são fabricados no país.

Quanto à modicidade de preços, trata-se indubitavelmente de um tema espinhoso em tempos de dumping cambial e da exacerbação do protecionismo em todos os países que, como o próprio termo indica, pretendem proteger suas indústrias. De qualquer forma, o governo está atento a essa questão. Preços descendentes no período de contratação, inovação tecnológica e transferência de tecnologia sempre constaram da agenda dos fóruns governamentais que tratam dessa matéria.

O marco regulatório que veio a ser criado em 2008 na área da saúde privilegiou a contratação da fabricação local de insumos estratégicos utilizados pelos laboratórios oficiais para atender às demandas do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso levou à criação de trinta parcerias de desenvolvimento produtivo (PDP) envolvendo laboratórios públicos e empresas privadas, nacionais e multinacionais com operações no Brasil, numa clara demonstração de que o que se busca é a fabricação local, com a consequente geração de emprego e renda no país, sem qualquer ranço xenófobo. 

Essas trinta PDPs em fase de implantação já representam compras no valor de cerca de 12% das atuais importações de fármacos, medicamentos e vacinas, proporcionando uma economia inicial de R$ 250 milhões/ano para o orçamento público, que deverá até 2015 superar R$ 500 milhões/ano.

Os serviços de saúde pública podem e devem melhorar. Mas a indústria que lhes dá suporte precisa ter raízes no país, caso contrário nós ficaremos à mercê das flutuações internacionais de oferta e preços de produtos essenciais. Concorrência predatória também faz muito mal à Saúde.

Nelson Brasil de Oliveira é vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina

Jornal do Brasil

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