quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Em defesa do direito ao aborto e contra a ditadura da religião



Há pouco mais de um ano, estive na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, evento que reuniu governo e sociedade civil para discutir o novo 3º Programa Nacional – aquele documento que está gerando comoção nos setores conservadores da sociedade brasilera. Lembro que, no seu discurso de abertura, o presidente Lula foi certeiro ao criticar quem é contra o direito ao aborto: “Quantas madames vão fazer aborto até em outros países, enquanto as pobres morrem nas periferias dos grandes centros urbanos?”

Ele já havia exposto sua posição outras vezes, explicando que pessoalmente não é a favor, mas que a questão do aborto não é de credo e sim de saúde pública. Afinal, quem tem R$ 5 mil faz a intervenção em uma boa clínica, quem não tem paga barato em caixas de Citotec ou usa agulhas de tricô. E ninguém vai impedir que isso continue acontecendo, nem o medo da fogueira eterna de um suposto inferno.

Defendo incondicionalmente o direito da mulher sobre seu corpo (e o dever do Estado de garantir esse direito). É uma vergonha absoluta não darmos a devida atenção às milhares de mulheres que morrem todos os anos por conta de abortos clandestinos mal-feitos como alternativa à inexistência de uma política pública nesse sentido. E uma vergonha maior ainda considerar que a mulher não deve ter poder de decisão sobre a sua vida, que a sua autodeterminação e seu livre-arbítrio devem passar primeiro pelo crivo do Estado e ou de iluminados guardiões dos celeiros de almas, que decidirão quais os limites dessa liberdade dentro de parâmetros estipulados historicamente por homens.

O governo federal vai voltar atrás e ceder aos faniquitos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), retirando a parte do texto que justifica a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto que leva em conta a “autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”. O presidente, como já dito, considera o aborto um problema de saúde pública, mas não endossa esse (justo) pleito dos movimentos feministas.

É extremamente salutar que todos os credos tenham liberdade de expressão e possam defender este ou aquele ponto de vista. Mas o Estado brasileiro, laico, não pode se basear em argumentos religiosos para tomar decisões de saúde pública ou que retirem direitos individuais. A justificativa de que o embrião tem os mesmos direitos de uma cidadã nascida é, no mínimo, patético.

Já é um absurdo prédios públicos, como o plenário do Supremo Tribunal Federal, ostentarem crucifixos. Ah, e antes que alguém apele, não sou ateu e isso não faz diferença nesse debate, tanto que uma das organizações mais atuantes em prol dos direitos reprodutivos é a Católicas pelo Direito de Decidir. Agir em prol de motivos religiosos seria mais uma derrota da razão, somada às derrotas diárias para a desigualdade, o preconceito, a intolerância… “É cultural”, justificam alguns. O argumento é risível, o mesmo dado por fazendeiros que superexploram trabalhadores, defendendo uma cultura construída por eles mesmos e, por isso, excludente. Nesse caso, poderíamos considerar que vivemos em uma ditadura religiosa, pois uma democracia prevê o respeito pelas diferenças.

Vale lembrar que apesar da fala dura de Lula há mais de um ano, o governo federal não tem agido muito no sentido de efetivar direitos reprodutivos. Esperemos que o presidente não se deixe levar pelo acordo bilateral que firmou com o Vaticano e que traz sérias preocupações à manutenção de um pleno Estado laico.

do Blog do Sakamoto

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