sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Presente a sonegadores: inconstitucional e antipovo

Dalmo de Abreu Dallari

Por meio de uma Resolução duplamente inconstitucional o Senado pretende conceder um presente aos sonegadores de tributos, entregando-lhes uma parcela do patrimônio do povo brasileiro. O instrumento que se pretende usar para a prática dessa inconstitucionalidade seria uma Resolução do Senado perdoando a dívida tributária de proprietários rurais e agentes do agronegócio. Como registrou a imprensa, por meio dessa Resolução serão perdoados R$17 bilhões em dívidas de produtores rurais com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). 


Essa proposta, escandalosamente inconstitucional e anti-social, foi de iniciativa da Senadora Kátia Abreu (PMDB), líder da bancada do Agronegócio no Congresso Nacional. A inconstitucionalidade dessa proposição é facílima de ser demonstrada e não deixa margem a qualquer dúvida. Foi divulgada, por comentário do Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, a informação de que a Advocacia Geral da União– AGU já se manifestou considerando inconstitucional tal Resolução. Divulgou-se também que, se não houver a desistência dessa medida, a AGU pretende pedir ao Supremo Tribunal Federal que declare sua inconstitucionalidade , completando-se o noticiário acima referido com a informação de que a bancada ruralista vem pressionando a AGU para que não recorra à Suprema Corte, pois não há dúvida de que se a matéria chegar ao Supremo Tribunal é praticamente certa a declaração de inconstitucionalidade.



Para que fique clara e objetivamente demonstrada a dupla inconstitucionalidade de tal Resolução, serão expostos a seguir os fundamentos de cada uma das inconstitucionalidades.



O primeiro fundamento é a falta de competência legal do Senado da República para conceder o perdão de débitos tributários. Com efeito as competências do Senado são clara, objetiva e minuciosamente especificadas no artigo 52 da Constituição. Nos incisos de número I a XV são especificadas todas as competências privativas do Senado, não havendo qualquer dispositivo que possa ser interpretado como competência para a concessão de favores tributários ou para o perdão de débitos de natureza tributária passados, presentes ou futuros. Assim, pois, o Senado não tem competência constitucional para conceder o perdão de dívidas tributárias e, portanto, a pretensa Resolução é absoluta e manifestamente inconstitucional, não podendo produzir efeitos legais.



Outra inconstitucionalidade, também clara e manifesta, é o desvirtuamento do instrumento jurídico denominado Resolução, que tem objetivos e limitações bem especificados, não podendo ser utilizado para a concessão de favores a contribuintes que deixaram de cumprir suas obrigações tributárias legalmente estabelecidas. Para que se verifique, com objetividade e absoluta certeza, o absurdo de uma Resolução perdoando débitos fiscais é interessante e oportuno trazer aqui o ensinamento do eminente constitucionalista José Afonso da Silva, em sua obra “Comentário Contextual à Constituição” (Ed. Malheiros, 2014 – 9ª.edição). Eis o ensinamento do preclaro mestre: “Resoluções – Visam a regulamentar matéria de interesse interno (político ou administrativo) de ambas as Casas do Congresso Nacional, em conjunto ou de cada uma delas em particular. Terminada a elaboração do projeto de Resolução, será esta promulgada pelo Presidente do Congresso Nacional, se versar matéria de interesse comum das duas Câmaras, como o Regimento Comum, sua reforma, etc. Se for Resolução sobre matéria de interesse apenas da Câmara dos Deputados, ela começa e termina ali, com sua promulgação por seu Presidente; se for do Senado Federal, começa nele e nele termina, com sua promulgação pelo respectivo Presidente” (ob.cit. pág.443).



Uma das razões pelas quais, conforme noticiado, se pretende usar uma Resolução do Senado para a concessão do favor aos sonegadores é precisamente o fato de que mediante tal medida a anistia fiscal, por mais evidente que seja sua inconstitucionalidade, não fica sujeita a objeções e questionamentos, não dependendo de aprovação pela Câmara de Deputados nem havendo o risco de eventual veto do Presidente da República. Mas é oportuno assinalar aqui que tal presente aos sonegadores implica a generosa e injustificável doação de recursos financeiros que pertencem ao patrimônio público, ou seja, pertencem ao povo brasileiro, que será lesado injustificadamente e inconstitucionalmente para beneficiar investidores e operadores da área do agronegócio. Assim, recursos financeiros que deverão ser usados para o atendimento de direitos e necessidades do povo serão dados de presente a pessoas e entidades que contam com a generosa solidariedade de titulares de mandato político que lhes foi conferido para que atuassem em benefício da cidadania brasileira e não contra os interesses do povo brasileiro.


* jurista


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