quinta-feira, 13 de julho de 2017

Karl Polanyi. O pensador mais perigoso da esquerda


A liberdade dos ricos suprime a dos pobres

“O resultado do desenvolvimento tecnológico acarreta uma grave perda de liberdade e uma fonte potencial de autoritarismo. Segundo Polanyi, a única maneira de reverter este processo é, assim como no caso da economia, quebrar as aspirações de automatismo e espontaneidade social, mediante a intervenção institucional e a reflexão moral. Se a técnica torna precária a própria existência da sociedade, a deliberação política a restaura”, escreve o jornalista Víctor Lenore, em artigo publicada por El Confidencial, 10-07-2017. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Desde os anos 1980, após a revolução reacionária de Reagan e Thatcher, a direita foi um rolo implacável, capaz de afundar qualquer proposta alternativa na Europa e Estados Unidos. O poder de convicção do individualismo thatcherista entrou, inclusive, no coração da social-democracia, até o ponto em que a Dama de Ferro chegou a declarar (com extrema lucidez) que o maior êxito de sua carreira política era que Tony Blair tivesse aceitado a maioria de seus postulados. Algo similar ocorreu na Espanha com o PSOE de Felipe González, que modernizou o país em muitos aspectos, mas consolidou as estruturas de poder franquista e encarrilhou as privatizações e a chamada “cultura do pelotaço”. Uma boa crônica do processo se encontra em Ibex35. Uma historia herética del poder em España (2017), escrito pelo doutor em sociologia Rubén Juste.



Os pensadores da esquerda global, em grande parte, viveram submetidos ao paradigma neoliberal, conformando-se com algumas migalhas de keynesianismo e com que as maiorias sociais mantivessem algum tipo de acesso à saúde, educação e seguro-desemprego. Esta timidez da esquerda é a que revalorizou a figura de Karl Polanyi (1886-1964), erudito húngaro, autor de A grande transformação. As origens políticas e econômicas de nosso tempo (1944), um ensaio clássico que transborda todos os limites do debate econômico atual.

A liberdade dos ricos suprime a dos pobres

Não falamos de nenhum radical enlouquecido. O prólogo da última edição de A grande transformação é assinado por Joseph E. Stiglitz, prêmio Nobel de Economia em 2001, além de um dos analistas mais respeitados sobre os conflitos da globalização neoliberal. “Polanyi escreveu A grande transformação antes que os economistas modernos explicassem as limitações dos mercados autorregulados. Hoje em dia, não há apoio intelectual razoável para a proposição de que os mercados, por si mesmos, geram resultados eficientes, muito menos equitativos. (...) Existem também abundantes evidências na era moderna que apoiam esta experiência histórica: o crescimento pode gerar um aumento da pobreza”. Hoje se demonizou com tremendo êxito qualquer tipo de intervenção estatal, exceto o resgate bancário e outros similares em favor dos mais ricos. Polanyi, ao contrário, apostava na concepção do mercado como um meio, não como um fim.



Na realidade, não há nada intrinsecamente ruim na regulação. “As regras podem arrebatar as liberdades de alguns, mas ao fazer isto aumentam as de outros. A liberdade de colocar e retirar capitais de um país à vontade é uma liberdade que exercem alguns, com um custo enorme para os demais”, destaca Stiglitz. Os limites pelos quais advogava Polanyi teriam servido para parar os ataques de especuladores à dívida soberana e a generalização da evasão fiscal. Há pouco, também se citava o falecido pensador em um artigo da página web CTXT a respeito de Trump e o auge do autoritarismo em nossos dias: “Já predisse Karl Polanyi: sob a economia de mercado, a liberdade degenera em uma ‘mera defesa da liberdade de empresa’, que significa ‘a plena liberdade para aqueles cuja renda, ócio e segurança não necessitam aumentar e apenas uma miséria de liberdade para o povo, que em vão pode tentar fazer uso de seus direitos democráticos para se resguardar do poder dos donos da propriedade”. Já soube ver que a desigualdade econômica iria se tornar a grande batalha política do futuro, que é nosso presente.

Uma saída para a crise

Em seu número passado, a publicação Democracy Journal of Ideas dedicava um extenso artigo ao inflamado debate global sobre o autor húngaro, disparado pela recente biografia Polanyi: A life on the left (2016), escrita por Gareth Dale, professor que trabalhou na London School of Economics. O livro ainda não foi traduzido para o castelhano. A resenha do Democracy Journal, assinada por Steven Klein, sintetiza magistralmente o porquê as análises de Polanyi soam tão perigosas para as elites. “O centro de seu pensamento contém uma ideia brilhante: que os três maiores espaços da economia – o trabalho, a terra e o dinheiro – são mercadorias fictícias. Isto quer dizer que jamais se adaptarão por completo às regras do mercado, já que os trabalhadores não se movem de imediato ao lugar onde a oferta lhes dita, nem os mercados podem substituir os rios e campos que secam e os governos sempre saltaram as leis de mercado para resgatar bancos, já que são os que mantêm a economia funcionando”.



Precisamente, as três áreas que Polanyi destacava, em 1944, foram os três centros da crise econômica de 2008. Recordemos quais foram: a bolha imobiliária das hipotecas subprime (terra), as demissões que levaram ao desemprego massivo (trabalho) e a crise de crédito que afundou muitos negócios (dinheiro). A proposta de Polanyi é tão lógica como simples: manter o mercado livre para as mercadorias reais, mas não o aplicar a estas três mercadorias fictícias.

Sacudir-nos da submissão

Esta é uma saída realista? Vale a pena reler o fragmento de um prólogo do filósofo e sociólogo César Rendueles, um dos maiores especialistas em Polanyi, em nosso país. “A revolução industrial lançou à luz e criou uma estrutura de interdependências impessoais radicalmente distinta dos vínculos comunitários tradicionais. Em A grande transformação, Polanyi delineia que a difusão do mercado livre conduziu, paradoxalmente, a níveis de poder governamental centralizado sem precedentes na história. Do mesmo modo, a codependência abstrata e anônima, típica das sociedades industrializadas, gera uma propensão à submissão”.



“Os desafios materiais da sociedade de massas – o fornecimento de água, eletricidade, calefação, moradia, transporte, gestão de resíduos... – instigam a se submeter a gestores com uma capacidade de intervenção desproporcional. Como destaca em A máquina e a descoberta da sociedade: ‘A substância orgânica da sociedade adquiriu uma forte rigidez ao fazer a vida depender de dezenas de milhões de indivíduos de máquinas estratégicas. O medo encheu os espíritos e uma propensão a se submeter a um poder ilimitado nasceu com a ajuda de gigantescas circulares que cuspiam a informação para aumentar a pressão”.



O resultado do desenvolvimento tecnológico acarreta uma grave perda de liberdade e uma fonte potencial de autoritarismo. Segundo Polanyi, a única maneira de reverter este processo é, assim como no caso da economia, quebrar as aspirações de automatismo e espontaneidade social, mediante a intervenção institucional e a reflexão moral. Se a técnica torna precária a própria existência da sociedade, a deliberação política a restaura. Resumindo: a proposta de Polanyi consiste em uma maior responsabilidade coletiva e não submeter ao mercado os recursos necessários para nos desenvolvermos como seres humanos. A quem já não soa tão estranho que tenha voltado a se tornar moda?



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