sexta-feira, 8 de julho de 2016

Proibido Educar ou Sócrates em Alagoas

Vladimir Safatle

Doutrinação da juventude, desrespeito a crenças e valores, aliciamento dos jovens para manifestações e posições contrárias à democracia. Essas podem ser algumas acusações que levarão, no futuro próximo, professores brasileiros a serem julgados pelo crime de "abuso de liberdade de ensinar".

Afinal, segundo os defensores de uma "escola sem partido", não é possível admitir que professores desrespeitem as crenças morais e religiosas de seus alunos, que eles os doutrinem inculcando atitudes contrárias à ordem vigente.

Alguns acham que essa deve ser a linha educacional daqui para a frente em nosso país. Essas pessoas, se vivessem em 399 a.C., estariam enroladas em uma bandeira brasileira, abraçadas a defensores de torturadores, sentadas na primeira fila de um famoso tribunal ateniense a apoiar veementemente a condenação à morte de um certo cidadão que, ao que parece, se chamava Sócrates.

Foram exatamente essas acusações que o levaram a julgamento há mais de 2.000 anos. Ou seja, se Sócrates fosse professor de educação pública em Alagoas, o primeiro Estado da federação a impor tal legislação baseada no referido abuso de liberdade de ensinar, ele estaria frente a frente com a Justiça mais uma vez. Mas, ao que tudo indica, em breve será todo o Brasil que estará livre de agitadores dessa estirpe.

Não deixa de ser sintomática a situação pela qual passamos atualmente. Em um momento de cortes de bolsas de estudos para mestrado e doutorado, de bloqueio de verbas para pesquisas e ampliação de universidades, de salários miseráveis de professores, de fechamento de escolas em todo o país e de redução da merenda escolar à bolacha cream cracker, o grande debate é sobre "como livrar nossas crianças da doutrina ideológica". Depois, ninguém sabe por que nossa educação não decola.

É claro que faz parte do primarismo retórico dos defensores de projetos desse quilate sair-se com exclamações do tipo: "Mas quem pode ser contra a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado, o pluralismo de ideias no âmbito acadêmico e a liberdade de crença?". Essa é uma especialidade nacional de longa data –chamar de "liberdade" o que é controle e censura.

De fato, ninguém é contra a neutralidade do Estado, o que não implica neutralidade dos seus cidadãos. Se assim fosse, o Estado deveria cassar o registro de todas as escolas confessionais que, mesmo sendo privadas, fornecem diplomas validados pelo Estado brasileiro. Neutralidade significa aqui: o Estado permite a seus cidadãos expressarem suas posições por entender que o debate e o conflito de visões é elemento fundamental para o desenvolvimento do saber. Um professor que dá sua opinião sobre determinado assunto e permite seus alunos se contrapor a ele é fato corriqueiro e salutar em nossas escolas.

Por isso, ninguém é contrário ao pluralismo de ideias no âmbito acadêmico. Agora, onde ele realmente está? Querem que nossos adolescentes conheçam teorias de gênero e práticas discriminatórias em vários lugares do mundo? Ou querem que esse debate simplesmente desapareça do horizonte? Querem que nossos alunos conheçam tanto a teoria das lutas de classes e da espoliação do trabalho assalariado quanto a teoria da mão invisível do mercado, tanto a história das religiões quanto os processos de seleção natural? Ou querem simplesmente que a ignorância seja respeitada como conquista sacrossanta?

Por exemplo, fui formado em uma faculdade que é vista pelos ideólogos dessa "escola sem partido" como o antro principal de doutrinação marxista do Hemisfério Sul. Durante minha formação, no entanto, nunca tive um curso sobre Marx, embora tivesse vários cursos sobre o "doutrinador liberal" John Locke, Thomas Hobbes e os "doutrinadores católicos" são Tomás de Aquino e santo Agostinho.

Ou seja, esse pluralismo defendido pelos nobres deputados alagoanos já existe desde há muito no Brasil. Mas, como não há educador algum a defender a insanidade desses projetos, é claro que eles não têm ideia do que se passa realmente em nossas salas de aula. Se houvesse algum educador ou professor envolvido nesses projetos, eles veriam, por exemplo, como nossos livros didáticos de história são escritos com o esforço de fornecer visões múltiplas sobre fatos complexos, expondo a pluralidade presente hoje no mundo acadêmico. Mas quem deles abriu um livro de história?

O fato é que não se trata de debater educação. Trata-se de jogar o país no ritmo da esconjuração e do desprezo anti-intelectualista. O resultado só pode ser condenar Sócrates uma segunda vez.


Folha SP


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