quarta-feira, 11 de maio de 2016

A divina família brasileira


Agora poderemos ver com clareza se aqueles que lutaram contra a corrupção não lutaram apenas para colocar sua divina corrupção familiar no poder

Christian Ingo Lenz Dunker


Não há nada menos democrático do que a família. Nela não podemos trocar de posição. Seremos sempre filhos, irmãs ou primos, segundo as regras de uma autoridade natural. Na família não escolhemos nem nosso próprio nome. Nela, quanto menores somos, mais nossos pais têm poder e controle sobre nossas ações, fazendo jus à origem do termo, famulus, escravo em latim. Também o reconhecimento que obtemos de nossa família é parcial e duvidoso: os aplausos, assim como as recriminações, são tudo menos justos e imparciais. 



A cegueira para com os vícios e defeitos de quem amamos é quase incurável. Sabemos que o reconhecimento real começa fora da família, e quem dela não se separa nunca deixará o espaço privado e se tornará um cidadão público, capaz de uso livre da razão. Kant, Hegel e Freud concordam que só realizamos nossa condição de sujeito se conseguimos sair da família e do destino que ela nos reserva. Apesar disso, a prerrogativa de origem, a nobreza de sangue ou de berço ainda são um fetiche poderoso para definir “as pessoas de bem”. Segundo essa teoria, a corrupção decorre de uma família ruim ou da falta de família, e da consequente falta de implantação de valores. Por essa mesma teoria, o estatuto de família deve ser recusado aos que não são como nós, porque não amam como nós.

Sergio Buarque de Holanda, ao escrever sobre o homem cordial, em 1936, abordou um problema que ele entendia como crucial para o futuro do Brasil. Estariam as famílias em condições de abrir mão de seu poder, transferindo sua autoridade para a formação de suas crianças pelo Estado, que as trataria em igualdade de condições e criaria uma equidade de oportunidades, capaz de criar futuros sujeitos autônomos?

Oitenta anos depois a pergunta do autor de Raízes do Brasil recebeu uma resposta sumariamente negativa. A maioria dos deputados justifica seu voto apelando para a família, para a sua cidade natal e para figuras divinas. Compreensível, afinal a família é a origem do caráter, concebido pela psicanálise como uma espécie de depósito de identificações, de experiências e de modelos abandonados pelo sujeito. Uma espécie de museu, onde guardamos relíquias que nos fazem lembrar de onde viemos. Se estamos em um empreendimento coletivo contra a corrupção, nada melhor do que voltar à origem e fundamento do caráter para justificar sua pureza moral. A família terrena enquanto duplicação da família celestial explica e justifica a diferença que existe entre nascer em uma família ou em outra. Escolha divina.

Contudo, esse raciocínio denuncia o contrário do que pretende mostrar. Ou seja, a corrupção não tem origem no trato da coisa pública, como se o contato com o poder fosse a fonte da corrupção. A corrupção é exatamente comportar-se no espaço público como se estivéssemos em família. Corrupto é aquele que entende que diferenças e privilégios têm fundamento divino-familiar, que a autoridade equivale à força e que a vantagem que as circunstâncias colocaram no seu caminho serve aos seus propósitos pessoais de defender “os seus” familiares, amigos e adjacentes. O corrupto está sempre com a “consciência tranquila”, pois está convicto de que a lei é para os outros, uma vez que os seus têm direito ao tratamento excepcional. Por isso ele pensa que os outros, que provêm de outras famílias, fariam a mesma coisa se estivessem em seu lugar. Ora, essa concepção predatória e não cívica provém justamente do excesso de família, e não da falta dela.

Os deputados que justificam seu voto em nome da família divina, e não em nome de valores republicanos, como justiça ou liberdade, estão entendendo sua eleição a cargos representativos em função do casamento teológico entre a vontade de mamãe e a graça de papai do céu. Por isso podem homenagear terroristas. Por isso agem como se não tivessem que dar satisfação a não ser aos seus familiares.

Agir por aplicação seletiva de regras, convocar princípios que dependem de quem os enuncia, punir como vingança pessoal são todas elas práticas familiares. A questão agora é saber qual é o tamanho dessa família formada por Michel Temer, Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro. Agora poderemos ver com clareza se aqueles que lutaram contra a corrupção não lutaram apenas para colocar sua divina corrupção familiar no poder.

*Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP

Brasileiros .com

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