sexta-feira, 27 de maio de 2016

Um golpe no golpe


A DIVULGAÇÃO de uma conversa entre os peemedebistas Romero Jucá, ministro do Planejamento de Temer, e Sérgio Machado, deixou claro, de uma vez por todas, que o impeachment de Dilma Rousseff era mesmo uma estratégia de alguns líderes políticos para barrar o avanço das investigações da Polícia Federal sobre esquemas de propinas e financiamento privado de campanhas.

Mas, o vazamento desse áudio foi curiosamente tardio, pois a conversa ocorreu em março, a gravação já era do conhecimento da Procuradoria Geral da República e do Supremo Tribunal Federal desde então, e só veio a público, coincidentemente, depois de consumado o afastamento da presidenta da república – convenhamos, é muita coincidência pra ser só coincidência!

Com o vazamento dessa conversa, o PMDB, o PSDB e o interino Michel Temer experimentam do próprio veneno, ou seja, provam do veneno amargo que os beneficiou até agora há pouco, quando os vazamentos das investigações da Polícia Federal prejudicavam apenas os petistas e o governo de Dilma Rousseff.

Esse episódio envolvendo os peemedebistas revela que a crise política em Brasília está longe de terminar, e, ao mesmo tempo, coloca duas questões no mínimo intrigantes. Primeira, quem fez vazar o áudio de Romero Jucá para a imprensa? Segunda: a intenção desse vazamento é desestabilizar também o governo Temer, tal como faziam com o governo Dilma?

Alguns analistas já estão levantando a hipótese de que o governo Temer não se sustenta, tamanhas a sua ilegitimidade e a reação do povo nas ruas, de modo que o melhor seria mesmo aprofundar as investigações sobre alguns peemedebistas (Eduardo Cunha, Romero Jucá, Renan Calheiros etc.), sobre alguns peessedebistas, como o próprio Aécio Neves, e depois convocar eleições gerais com a vitória líquida e certa dos conservadores.

Ou seja, os órgãos repressivos do Estado – polícia, Ministério Público e Justiça – teriam completado assim o serviço de “limpar” o nosso sistema político-eleitoral, de forma aparentemente legítima e “apartidária”, atingindo todo o Partido dos Trabalhadores e apenas alguns nomes fortes do PMDB e do PSDB. Daí pra frente, com novas eleições convocadas, o governo saído das urnas teria toda a legitimidade para apaziguar o país e pôr fim à crise política que parece interminável.

Pode ser, esse é realmente um cenário possível. Mas há uma outra hipótese igualmente possível, talvez menos provável, mas nem tanto: pode ser que os órgãos de repressão, até aqui apoiados e aplaudidos pelo grupo político que agora tomou o governo federal, estejam agindo com plena autonomia, por contra própria e por gravidade, uma vez que perceberam o poder quase ilimitado que têm nas mãos, e, como sói acontecer em circunstâncias assim, tomaram gosto por esse poder.

De fato, os órgãos repressivos atuaram até aqui com plenos poderes, às vezes até acima da lei e da Constituição, perceberam o quanto são temidos pelos políticos e apoiados pela mídia e por boa parcela da população, perceberam que podem derrubar até um presidente da república, perceberam que suas ações podem subordinar o Estado de Direito e o sistema de garantias constitucionais, perceberam, enfim, que são poderosos – e ninguém resiste à tentação do poder.

Nesse caso, fica aberta a possibilidade de um “golpe dentro do golpe”. Exatamente como ocorreu no golpe militar de 64: em abril daquele ano os militares depuseram o presidente João Goulart, mas já em 1968 uma parte dos golpistas deu novo golpe com a edição do famigerado AI-5 que estabeleceu os objetivos autônomos da ditadura, recrudesceu a repressão militar e direcionou essa repressão até mesmo contra a classe política que havia apoiado abertamente o primeiro golpe em 64 – as forças da repressão ganharam autonomia e saíram de controle.

Hoje, há sinais veementes de que as novas forças punitivas estão crescendo de maneira autônoma, e contaminando boa parte do aparelho burocrático-repressivo do Estado. Pode ser que estejamos trocando, sem o perceber, o Estado de Direito por um Estado policial-repressor.

Prova disso são as delações sistemáticas obtidas mediante prisão e ameaça de prisão, o abuso indiscriminado das prisões provisórias, as conduções coercitivas espetaculosas e desnecessárias, as sucessivas buscas e apreensões, as sistemáticas interceptações telefônicas, as interceptações ilegais, a divulgação ilegal dessas interceptações, as violações do sigilo telefônico (até da presidenta da república), o desrespeito à presunção de inocência mediante execração pública de investigados, a violação da intimidade das pessoas, as investigações policiais intermináveis sem prazo de conclusão, a disseminação de grampos e “arapongagem” (até mesmo no gabinete de um ministro do STF), o protagonismo do cárcere e do poder de polícia, o clima de medo e de desconfiança, enfim, o sistemático desrespeito às franquias constitucionais pelos órgãos repressivos, tudo isso é sintoma claro de um Estado policialesco.

Há sinais de que está havendo uma clara “autonomização” dos órgãos repressivos em relação e acima dos demais poderes. Isso pode levar o país a uma espécie de “policialismo judiciário” – uma variante do Estado autoritário travestido de Estado de Direito. E, na verdade, esse “policialismo judiciário” é um modelo que já predomina no âmbito do nosso sistema penal há muito tempo; a novidade é que ele agora se projeta também sobre o campo da política.

Não se pode entrever com clareza até onde isso tudo vai chegar. A única coisa que parece indiscutivelmente certa é que os métodos de um Estado policial, seus objetivos e valores são letais para qualquer democracia, que dirá para uma democracia jovem, hesitante e tão maltratada como a nossa.

Avesso e Direito 


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