sexta-feira, 8 de abril de 2016

Desafios para a esquerda na conjuntura de golpe


João Ricardo W. Dornelles e Carol Proner

Existe um golpe em curso ou o golpe já está dado? Estamos diante de um golpe com características midiáticas ou judiciais? 


Perguntas que nos levam a constatação de uma crise política sem precedentes vivida pelo Brasil. A polarização existente apresenta um grau de explosividade social dificilmente visto na nossa história.

Trata-se de um quadro de crise de hegemonia ou crise orgânica, para usar uma categoria gramsciniana, onde as forças políticas passam a conformar blocos históricos com tendência de empate. Quando se fala em golpe não se trata de um momento específico e localizado na história, mas sim de um processo que vem sendo vivido nos últimos anos.


O golpe atual tem um curso histórico que se iniciou há, pelo menos, dez anos. Iniciou-se antes do mensalão e teve continuidade mais intensa nos períodos eleitorais, com um momento de inflexão representado pelas “jornadas de junho de 2013”. Mas o golpe já estava em marcha e já construía os seus alicerces institucionais e de formação de um senso comum conservador de parcelas importantes da sociedade, da opinião pública e das instituições.

O quadro de exceção – de excepcionalidade na aplicação da legalidade, de flexibilização dos princípios constitucionais característicos do Estado Democrático de Direito como a presunção da inocência, direito à privacidade, ampla defesa, a garantia do contraditório, preservação do direito de imagem, banalização das prisões cautelares, utilização de provas ilícitas etc – passou a ser mais evidente em ações ilegais e arbitrárias de setores do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. Recorrendo à imagem vivida nos anos 1930 na Europa, é o que Benjamin anunciou como “aviso de incêndio”: a exceção como regra geral.

Entendido como processo cadenciado, o golpe possui atores e estratégias pensadas em cada nova fase. Alguns elementos são centrais para entender o caso brasileiro, a participação da mídia, do oligopólio midiático como entusiasta da desestabilização social e da quebra institucional.

O efeito dramático na formação continuada da opinião pública implacável contra todos os atos dos governos Lula-Dilma foi determinante para que chegássemos a esse ponto de insuflação social. O Instituto Millenium pode ser considerado uma versão contemporânea do que foi o IPES nos anos pré-64 e atua em toda a América Latina.

A preparação do golpe contou também com o que Boaventura de Sousa Santos chamou de “fascismo societal”, ou seja, um sentimento difuso que expressa concepções retrógradas, racistas, preconceituosas, encasteladas historicamente nas classes médias e altas e que se revela em forma da disseminação de um ódio crescente. Dentre os atores presentes na preparação do golpe também estão o capital financeiro e os segmentos rentistas das classes dominantes.

Não se pode ignorar que esta realidade está contida em um cenário mais complexo e internacionalizado, o papel desempenhado pelo Brasil a partir do governo Lula e a diplomacia altiva, a autonomia das políticas internacionais brasileiras e o descolamento da agenda bilateral com os Estados Unidos, o fortalecimento regional e do Mercosul, o reforço da política Sul-Sul e a conformação de um bloco de alianças com economias emergentes, os chamados BRICS.

Ao mesmo tempo, no plano interno os governos sucessivos de Lula e de Dilma trouxeram para o palco central da sociedade as classes sociais e os segmentos historicamente invisíveis e subalternos na história do país. O que Marcio Pochmann chamou de “nova classe trabalhadora” que acessou renda e bens que antes eram privilégio de poucos.

Esse movimento se expressa no simbolismo do acesso da população mais pobre ao transporte aéreo, um espaço de exclusividade que despertou o ranço preconceituoso em frases como “aeroportos transformados em rodoviárias”; também privilégios educacionais como a presença de população desfavorecida nas Universidades por meio de programas de políticas públicas de inclusão ou por intermédio de quotas raciais e sociais em diferentes segmentos; também no direcionamento de investimentos de infraestrutura para regiões mais pobres do país, especialmente norte e nordeste, invertendo o fluxo migratório interno que faz parte da gênese de exclusão e segregação do país; em suma, os governos de Lula e Dilma foram capazes de retirar da miséria de cerca de 36 milhões de brasileiros, mais que qualquer governo anterior e recorde quando comparado a qualquer outro país, provando que é possível haver desenvolvimento com distribuição de renda.

Há outros pontos que devem ser considerados na análise do compasso golpista: a descoberta, em 2007, de uma das maiores reservas de petróleo no mundo, jamais imaginadas e em terreno de difícil extração (pré-sal brasileiro, exigindo alta tecnologia da tão cobiçada Petrobras).

Ao mesmo tempo, em 2008 o capitalismo global passou a enfrentar uma de suas piores crises. Nesse sentido, as razões para a interrupção brusca do governo foram ganhando corpo pela própria vocação dos partidos de oposição de corte neoliberal (PSDB, DEM) sustentados pelas classes médias tradicionais e pela elite suscetíveis aos apelos de lobistas das petroleiras internacionais e da mídia oligopolista privada.

O elemento surpresa revelado nos últimos tempos é o papel de setores expressivos do poder judiciário, cada vez mais conservadores e adaptados aos interesses econômicos da elite e criando uma conveniente simbiose entre mundo jurídico e mundo político, conveniente porque fornece um envelope pseudo-legalista ao golpe.

É nesse ponto que se torna difícil combater as forças antidemocráticas. Se, por um lado, a face visível da crise se alimenta do compreensível desgaste da população frente a processos históricos e atávicos de corrupção na máquina pública brasileira, por outro o que está por trás da cadencia golpista vai além de interesses domésticos, é maior e mais complexo.

A resposta está, de um lado, no inconformismo das elites, de traço oligárquico e neocolonizador e, de outro, nos interesses do capital internacional, em especial do capital financeiro hegemonizado por Wall Street diante da rebeldia das posições governistas do Brasil que insistem em contrariar interesses estadunidenses.

Em suma, temos a conjugação de elites atrasadas e inconformadas com a ampliação de direitos sociais que permitiram a inclusão de amplos contingentes de população (Universidades, empregos formais, aeroportos, planos de saúde, shopping, consumo etc) dentro de um cenário de crise do capitalismo global e da intensa luta no contexto de disputa geopolítica e de recomposição e concentração do capital internacional.

O cenário é complexo. movime

Os principais atores internos (Organizações Globo; políticos do PSDB, FIESP) com apoio do médio e pequeno empresariado e das classes médias passam a exigir com maior intensidade o fim do ciclo dos governos do PT. Ao mesmo tempo se prepararam para vencer as eleições de 2014 com Aécio Neves como forte candidato e, após a morte de Eduardo Campos, tendo Marina Silva como um plano B e com reais possibilidades de se tornar plano A em caso de necessidade. Nas eleições ambos foram derrotados ainda que por margem mínima de votos.

Mas essas lideranças saem das urnas inconformadas e passam a utilizar todas as práticas de desestabilização para afetar a governabilidade e criar impasses ao governo legitimamente eleito. Não deixar governar passou a ser o método a seguir e o aprofundamento da crise permitiria o combustível suficiente para a agenda golpista na sua fase jurídico-política, um golpe branco, institucional, judiciário-parlamentar com o surgimento de um herói nacional na figura de “salvador da pátria”, porta voz da justiça, justiceiro, que se levanta contra a corrupção, contra o PT e contra a crise econômica e de governabilidade.

O processo de construção e organização do golpe ganhou muita força e amplo apoio social, conforme sabemos. Surgem manifestações com camisas da seleção brasileira convocadas pelas principais mídias dando a impressão que a essência da nacionalidade patriota se insurgia contra uma organização criminosa a qual teria assaltado o Estado. Cria-se um ambiente de “fascistização social”, de intolerância, de ódio e de criminalização de um partido político representante simbólico das esquerdas, das pautas emancipatórias e da ampliação de direitos.

Em determinado momento o golpe passou a ser explicito e amplamente comemorado por antecipação. Esse cenário só começa a retroagir a partir dos erros do próprio judiciário, operador da principal engrenagem – o juiz da Lava Jato – equívocos e exageros de setores do Ministério Público e da Polícia Federal que se deixaram contaminar pelas ruas no papel de salvadores da sociedade. Os erros, amplamente debatidos pelas esquerdas abrem a possibilidade de denunciar o golpe na disjuntiva: democracia X estado de exceção.

As ruas tomadas de movimentos sociais e grupos plurais encontram finalmente a bandeira de consenso e que lhes permitem saírem do impasse de ter que defender o governo e mesmo o partido dos trabalhadores bastante desgastado pelos desmandos de alguns de seus membros. O golpe, enfraquecido pelo fato de que o impeachment não tem causa, provavelmente será frustrado pela revanche democrática que toma o país nas últimas semanas.

Tendo trazido alguns elementos para a reflexão, agora nos resta pensar alternativas e debater. A partir do diagnóstico do tempo presente, o mês de abril de 2016 será marcante para os rumos da realidade política brasileira.

Por um lado, a possibilidade de aceitação pela Câmara dos Deputados do pedido de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Nessa hipótese, Dilma seria afastada para que o processo seja apreciado pelo Senado.

Mas com o seu afastamento assumiria o Vice Michel Temer em articulação com outros segmentos golpistas, em especial o PSDB, dando início a um governo baseado no Programa “Ponte para o Futuro” que, segundo alguns analistas, mais parece uma “Pinguela para o Passado” pela imposição de uma pauta ultraconservadora, neoliberal, propondo um ajuste baseado na terceirização das relações de trabalho, a flexibilização ou o fim da CLT, o desmonte dos poucos aspectos de Estado de Bem-Estar Social presentes no Brasil, a fragilização do SUS, a privatização da universidade pública, a privatização do Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, o fim do Prouni, Fies e outras políticas de inclusão, o fim ou diminuição significativa do Programa Bolsa Família, do “Minha Casa, Minha Vida”.

Ou seja, a absoluta fragilização de conquistas sociais históricas, algumas delas que vem dos anos 1930 e 1940. Não esqueçamos que durante os governos tucanos de FHC o que se dizia era que chegara a hora de enterrar de vez a “Era Vargas”.

A vitória da direita também significa a possibilidade de privatização da Petrobras, a entrega das reservas minerais e energéticas ao capital internacional, a saída ou a paralisia dos BRICS, o desmonte ou debilitação do Mercosul e o alinhamento automático às políticas internacionais lideradas pelos Estados Unidos através dos tratados de livre comércio e de medidas de reforço da hegemonia do capital financeiro capitaneado por Wall Street.

Por outro lado, no caso da derrota golpista do impeachment sem existência de crime de responsabilidade abre-se um cenário desafiador para o campo progressista e das esquerdas. A vitória imediata contra o golpismo obriga as esquerdas a pensarem o que significa essa nova realidade.

O avanço do golpismo, a expansão dos espaços de exceção, o aumento da intolerância e os traços fascistas que passam a existir na sociedade brasileira ganharam um componente novo durante o mês de março de 2016. O mês de março fortaleceu, para surpresa das direitas e das próprias esquerdas em certa medida, uma ampla mobilização em todo o país que deixa evidente a massa crítica em desconformidade com as agendas ou legendas partidárias.

A condução coercitiva de Lula, no dia 04 de março, a expressão máxima do arbítrio e da exceção à legalidade, foi o detonador da resistência democrática. Imediatamente, de uma forma quase espontânea, por todo o país foram mobilizados movimentos sociais, coletivos democráticos, grupos, sindicatos e partidos de esquerda em consenso mínimo.

A resistência ganhou as ruas, as universidades, fábricas, grupos profissionais, como um sinal de alerta para o perigo de ruptura democrática e aprofundamento do estado de exceção que ia derrotando o estado democrático de direito.

Também não se pode ignorar que passou a jogar um papel importante a denúncia internacional e o esclarecimento da imprensa internacional, com mobilizações pela América Latina, Europa e Estados Unidos a favor da Legalidade Democrática e contra o golpe no Brasil e denuncia de violação da cláusula democrática prevista em diversas organizações internacionais e garantia da estabilidade da sociedade internacional.

O cenário, a partir de março, começou a mudar drasticamente e a polarização enfraquece de certa forma. Se de um lado estão, como já apontado, o capital financeiro internacional, a FIESP, a mídia oligopolista, os seus partidos de corte neoliberal, os grupos fascistas organizados e financiados por interesses internacionais, de outro existe uma esquerda ampla e movimentos sociais que, apesar das profundas divergências entre si e com o governo e o PT, encontraram via ou linhas mestras para formar consensos oportunizando um debate mais amplo e rico.

O desafio talvez nem precise esperar o dia seguinte da votação do impeachment, pois já se coloca no dia de hoje ao menos algumas frentes importantes:

1). a frente institucional, com a continuidade do governo Dilma e com a presença Lula como Ministro, uma nova correlação de forças poderia surgir na hipótese de uma recomposição ministerial com partidos da base aliada. Especialmente pela presença e influência de Lula como Ministro Chefe da Casa Civil e com a permanência de Dilma, superada a questão do Impeachment, poderia se esperar uma guinada à esquerda? Seria viável? Conseguiria aprofundar as conquistas sociais, aproximar-se dos movimentos sociais e deixar de preterir e excluir demandas da própria esquerda?

2). a frente extra institucional, com os movimentos sociais e os coletivos populares, mantendo e aprofundando formas de organização popular e ampliação pela base da consciência emancipatória.

Consideramos que a luta não termina neste mês de abril de 2016, seja qual for o resultado que venha da decisão da Câmara dos Deputados. A luta será longa e o empate ou a crise hegemônica ainda estará sem solução. A temperatura social e política permanecerá alta. Será capaz esta frente progressista de encontrar uma nova forma de representatividade? Novo partido? Novo movimento? Renovados protestos e manifestos? Nem a direita se conformará com uma derrota nem as esquerdas se conformarão com o golpe ou com um governo de composição em detrimento dos direitos conquistados. O Brasil não será mais o mesmo.


Democracia e Conjuntura 


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