quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A solidariedade em um mundo sem coração



[31 de agosto: Dia Internacional da Solidariedade]

Carlos Ayala Ramírez

No dia 31 de agosto celebra-se o Dia Internacional da Solidariedade para promover e fortalecer os ideais ligados a esse valor, fundamentais para as relações entre os Estados, os povos e as pessoas. Os pressupostos dessa comemoração são os seguintes. Primeiro: vivemos em um mundo de grandes desigualdades entre ricos e pobres. Segundo: o verdadeiro progresso não será alcançado sem a cooperação entre as nações e os povos, para acabar com a pobreza e sem a solidariedade com os despossuídos. Terceiro: devemos assumir responsabilidade ante os que são excluídos do acesso aos recursos necessários para o desenvolvimento, cujos direitos humanos e dignidade não são respeitados. Quarto: devemos potencializar uma relação responsável com a natureza.

Luis de Sebastián, de grata recordação na Universidade Centro-americana (UCA), definiria a solidariedade como o reconhecimento prático da obrigação natural que os indivíduos e os grupos humanos têm de contribuir para o bem estar dos demais, especialmente dos que têm mais necessidade. E explicava que os aspectos negativos da condição humana histórica demonstra que estamos em uma situação de emergência e que, portanto, existe um nexo objetivo que nos liga uns aos outros em nossa limitação e fragilidade, que pode converter-se em uma fonte de energia que cada um, sozinho, não tem. Nessas circunstâncias, o comportamento individualista, não cooperativo (o "salve-se quem puder”), com certeza, será desastroso, suicida e criminoso; enquanto o esforço coletivo para aceitar e transformar com inteligência e valor o vulnerável e inseguro da existência humana conseguirá que todos levemos uma vida mais racional e humana.

E, a partir de uma perspectiva menos pragmática e com mais ênfase na obrigação moral, Adela Cortina, filósofa espanhola, sustenta que a solidariedade deve estar fundamentada em uma ética cívica cordial, cujos princípios seriam os seguintes: não instrumentalizar as pessoas; empoderar suas capacidades; distribuir equitativamente as cargas e os benefícios; abrir-se à vida e interesses dos interlocutores; e manter uma atitude de responsabilidade para com os seres não humanos indefesos. Qual a implicação de cada um desses princípios para a convivência humana guiada pela ética da cordialidade (ou seja, uma ética com capacidade de compaixão para reagir ante o sofrimento dos outros e com capacidade de indignação para enfrentar as injustiças)? Vejamos algumas das ideias centrais expostas por Adela.

A solidariedade se define a partir do outro ou, melhor dito, a partir do reconhecimento do outro e de si mesmo em sua dignidade. Ou seja, reconhecer que cada um deve evitar converter-se para os demais em um meio, e conseguir ser para eles um fim. Trata-se de uma das formulações do imperativo categórico do filósofo alemão Kant: "Obra de tal modo que trates à humanidade, em tua pessoa ou nos demais, sempre e ao mesmo tempo como um fim e nunca meramente como um meio”. Dito em linguagem do reconhecimento cordial, se converte na obrigação de não instrumentalizar-se reciprocamente, mas respeitar a autonomia alheia e a própria. Não é legítimo causar dano às pessoas; porém, tampouco, instrumentalizá-las contra seus próprios planos vitais, sempre e quando esses planos não sejam perniciosos às outras pessoas. Em consequência, o limite de qualquer atividade (política, econômica, científica etc.) é a não manipulação.

Porém, não se trata somente de não manipular, mas, também, de empoderar, de atuar positivamente para potencializar as capacidades das pessoas. Respeitar a dignidade humana não significa unicamente não utilizar nem causar dano aos seres humanos; exige empoderá-los para que possam levar adiante seus projetos de vida. Nesse plano, a solidariedade passa por fortalecer o exercício dos direitos humanos políticos, culturais e econômicos; e por desenvolver as capacidades, oportunidades e características das pessoas. Por outro lado, a solidariedade não pode prescindir da justiça. Adela Cortina propõe o modelo de justiça do "interlocutor válido”, que vai além da distribuição de cargas e benefícios em uma sociedade, e que consiste em empoderar as pessoas para que possam participar e defender seus direitos básicos fundamentais (constituir-se em cidadania ativa). O motor dessa vontade de justiça é o reconhecimento cordial dos que são iguais em dignidade, e diversos em capacidades e identidade.

Outra exigência é tomar em conta os interesses dos atingidos pelas decisões de ordem pública. Por exemplo, cresce a consciência de que não se deve legislar sem contar com a participação cidadã naquelas questões que os atingem. A razão primordial é que são eles os que melhor percebem os efeitos dos sistemas político e econômico, e quem conhece mais a fundo seus interesses. Esse tipo de solidariedade implica abrir um debate em profundidade sobre os principais temas de interesse cidadão e acionar mecanismos concretos de participação.

Finalmente, Adela Cortina fala da solidariedade com os seres humanos indefesos. Nesse sentido, apoia-se no princípio de responsabilidade, de Hans Jonas, que, seguindo a forma do imperativo categórico kantiano, afirma: "Obra de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência da vida humana autêntica na Terra”. Dito em outras palavras, se os seres vivos têm um valor intrínseco, apesar de que não absoluto, e se são vulneráveis, se comporta de forma imoral quem, podendo tornar-se responsável por eles, não assume essa responsabilidade.

Em suma, a solidariedade não se limita a um sentimento caritativo, a um alívio de necessidades individuais, a uma atividade puramente assistencialista. Em seu sentido mais profundo, busca converter-se em uma práxis que contribua à transformação de estruturas indolentes e desumanas. E tem como fonte de inspiração a estima da dignidade alheia e a própria, a indignação pelo dano injusto e a compaixão ante o sofrimento que chega até as entranhas e ao próprio coração.

A solidariedade é um modo de ser responsáveis com os demais. É ter um coração de carne e não de pedra. Sou solidário quando não me fecho para o outro, mas deixo que entre onde estão meus sentimentos. E isso está expresso de maneira muito linda em uma oração budista: "Que possa ser protetor dos abandonados; o guia dos que caminham; e para os que desejam ir para a outra margem, o navio, a barca, a ponte; a ilha para os que necessitam uma ilha; a luz para os que necessitam de uma luz; o leito para os que necessitam de um leito; a pedra milagrosa; o vaso do grande tesouro; a fórmula mágica; a planta que cura; a árvore dos desejos; a vaca da abundância. Que, enquanto dure o espaço e enquanto os seres humanos permaneçam, possa eu também permanecer para aliviar os sofrimentos do mundo”.

Adital

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