segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Medicalização e Desconstrução dos Direitos Humanos


Medicalização: Elemento de Desconstrução dos Direitos Humanos


Maria Aparecida Affonso Moysés
Cecília Azevedo Lima Collares


“O corpo é uma realidade biopolítica; a medicina é uma estratégia biopolítica”.
Michel Foucault


As sociedades ocidentais apresentam, em sua história recente, um ponto de inflexão fundamental para sua própria conformação, tal como as conhecemos hoje. Nesse período, próximo a oitenta anos, na transição entre os séculos 18 e 19, ocorreram vários processos, de intensa ebulição política, todos articulados entre si, brotando no mesmo chão social, histórico e político.

Aqui, tomamos como alicerces de nossa reflexão, três desses processos: a revolução francesa; o surgimento de uma nova anatomia política nos modos de vigiar e punir; e a constituição, pela medicina, de seu estatuto de ciência moderna.

É na articulação entre os dois primeiros processos, no mesmo terreno que os possibilitou, que pode brotar e resistir a concepção de que todos os seres humanos têm os mesmos direitos, inalienáveis. Trata-se, como todos os conceitos e concepções, de uma construção histórico-cultural, e não de algo natural, inato ao ser humano, ou inerente às sociedades humanas. Nem natural, nem biológico, menos ainda genético. Uma construção cultural que somente pode existir quando enxergo “o outro” como um sujeito como eu, com ele me identifico, o que faz com que seja afetada quando ele é atingido, sentindo e sabendo que “quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte”.
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A história das sociedades ocidentais, nos últimos dois séculos, mostra que em períodos de conturbação social, a ciência substituiu a igreja na tarefa de fornecer os critérios para identificar os “infratores”. Assim, ateus hereges e bruxas foram transformados em loucos, criminosos, agressivos, disfuncionais.

As ciências da saúde, particularmente a medicina e a psicologia, têm desenvolvido esse papel com grande competência. Exatamente porque os profissionais exercem seu papel sem se darem conta, pois se fossem preparados para agir conscientemente não seriam tão eficientes.

E como as ciências da saúde resolvem os conflitos sociais e políticos? Naturalizando-os. Basta lembrar as grandes contribuições da medicina e da psicologia nos anos 1960, período em que praticamente todos os valores foram contestados pela juventude.



 Nessa década, “comprovou-se” que a agressividade era biologicamente determinada por cérebros disfuncionais e a solução proposta e implantada para a violência nos guetos foi a psicocirurgia, eufemismo para lobotomia; também foi “provado” que a inteligência é geneticamente determinada e que os negros são, naturalmente, inferiores aos brancos; “provou-se”, ainda, que geneticamente as mulheres desenvolvem menos o raciocínio matemático e o abstrato, o que explicaria sua maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, particularmente nos cargos de chefia. Isto sem falarmos das teorias de Lombroso e, em especial, de suas recentes releituras.
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Na atualidade, o quadro se repete, até amplificado. Medicaliza-se o medo de viver em cidades violentas, assim como a própria violência, desconectada da exclusão social e de uma vida sem perspectivas. Tentam nos reduzir a seres estritamente biológicos. Células sem contexto, sem cultura. Genes atemporais, sem história, sem política.
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Ao se biologizar um problema, transformando-o em algo “natural, inevitável”, isenta-se todas as instâncias nele envolvidas. A sociedade, com suas desigualdades, os governantes e suas opções, tudo é escamoteado pelo fato – talvez seja melhor falar em azar – de que existem defeitos que incidem como se aleatoriamente, sem determinação social. Um ideário perfeito para que tudo permaneça como está.

Como já apontamos, a noção de direitos é datada e situada, como diria Paulo Freire, e não tem espaço em um território biologizado. A medicalização constitui, portanto, elemento primordial na desconstrução de direitos.
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“A normatização da vida tem por corolário a transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. O que escapa às normas, o que não vai bem, o que não funciona como deveria... tudo é transformado em doença, em problema individual. Afasta-se a vida, para sobre ela legislar, muitas vezes destruindo-a violenta e irreversivelmente. E os profissionais, com sua formação acrítica e ahistórica, exercem, a maioria sem se dar conta, seu papel de vigilantes da ordem. Crentes nas promessas de neutralidade e objetividade da ciência moderna, não sabem lidar com a vida, quando se defrontam com ela”.

Extratos do artigo.

Versão completa em:
http://www.crprj.org.br/documentos/2006-palestra-aparecida-moyses.pdf



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