terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Verdade, a justiça e o perdão






Em nome dos homens firmes e honrados, que não conseguiram resistir, e falaram, mais do que daqueles que foram capazes de suportar a tortura, é que a verdade deve ser conhecida. Essa verdade redimirá a alma dos que já se foram e aliviará o peso dos que conduzem, ainda vivos, sua alma dilacerada.

Mauro Santayana
Quando se discute sobre a responsabilidade e os limites da Comissão da Verdade, as razões e as emoções de todos se dirigem ao ponto mais doloroso daqueles tempos: a tortura. Por ser tão anti-humana, e nem mesmo corresponder ao instinto animal da caça, que recomenda a rapidez do golpe, a fim de eliminar qualquer reação, o ato da tortura é incompreensível. Só um torturador poderia explicar a natureza de seu comportamento. Os torturados lembram o prazer dos algozes e a sua frustração animalesca, quando encontram a resistência das vítimas.


Ao se referir à violência da extrema-direita na Europa, Theodor Adorno dá uma explicação, que já se encontrava no núcleo do pensamento freudiano: o fascista é, na verdade, um masoquista, que só a mentira transforma em sádico, isto é, em agente da repressão.

Em um de seus inquietantes relatos sobre o auge do totalitarismo nazista, Arthur Koestler – o mesmo autor de “O Zero e o Infinito” – conta, em “Ein Mann springt in die Tiefe" (“Um homem salta no abismo”) uma história de torturas na Hungria, sob a ditadura de Miklós Horthy. Um jovem prisioneiro é torturado sempre à mesma hora da tarde, e sua astúcia para a resistência é a de masturbar-se várias vezes ao dia. Estando debilitado pela subnutrição, o esforço reduz a resistência física ainda mais: assim, aos primeiros golpes do torturador, desmaia – e é devolvido à cela com o seu silêncio.

Um dos aspectos menos discutidos da Revolução Francesa é o da ausência de atos de tortura. Houve a violência no ato de prisão de algumas personalidades, por ordem do Comitê de Salvação Pública e dos reacionários termidorianos, como foi o caso de Robespierre, alvejado e ferido na mandíbula, na noite de 27 de julho de 1794, ao resistir na Prefeitura de Paris. No dia seguinte sem ter sido ultrajado, foi guilhotinado.
 

A tortura sempre fora empregada na História, e tivera seu momento mais forte durante a Inquisição e a Reforma Protestante. A hierarquia católica e os reformistas luteranos e calvinistas (sobretudo os calvinistas) nada ficaram devendo a seus inimigos teológicos. A partir da Revolução Francesa, ela foi virtualmente abandonada pela repressão, até ressurgir durante a Primeira Guerra Mundial.
 

Em um de seus escritos, Hélio Pellegrino define a tortura como uma tentativa do torturador em colocar o corpo do torturado em conflito com a sua alma: o objetivo da dor é o de vencer o espírito. Antes do poeta e psicanalista mineiro, Albert Camus usaria a mesma imagem, a do conflito entre o corpo e o espírito, em um de seus mais incisivos libelos contra a barbárie dos ocupantes alemães.
 

Na série dos artigos que escreveu, logo depois da libertação, para
 Le Combat, destacam-se os dedicados aos torturados e mortos pelos colaboracionistas franceses, a serviço dos ocupantes. No texto publicado em 30 de agosto de 1944 – quando se refere a uma das muitas denúncias de tortura daqueles quatro anos de abjeção – Camus se espanta de que torturadores e torturados tivessem a mesma face humana. E lembra a figura de Himmler, que fizera da tortura uma ciência e um ofício, e que entrava em silêncio em sua casa à noite, depois dos crimes perpetrados durante o dia, para não acordar o canarinho amado, que serenamente dormia em sua gaiola.

E descreve os torturadores, os torturados, a natureza justa do castigo e do perdão:

“Eles acreditavam que há sempre uma hora do dia ou da noite na qual o mais valente dos homens se sente covarde. Souberam sempre esperar essa hora. E nessa hora, buscaram a alma, por meio das feridas do corpo, e a tornaram selvagem e demente, e, às vezes, traidora e mentirosa. Quem se atreveria a falar, aqui, de perdão? Já que o espírito compreendeu por fim que só podia vencer a espada com a espada, já que tomou as armas e obteve a vitória, quem lhe queria pedir que esqueça? Amanhã não falará o ódio, senão a justiça mesma, baseada na memória. E é justiça, a mais eterna e sagrada, perdoar, talvez em nome de todos os que, entre nós, morreram sem ter falado, com a paz superior de um coração que jamais traiu: mas também é justiça castigar terrivelmente, em nome dos mais valentes de nós, que foram convertidos em covardes, quando degradaram sua alma, e morreram desesperados, levando em seu coração, devastado para sempre, seu ódio aos torturadores e seu desprezo por si mesmos”.
 

Em nome dos homens firmes e honrados, que não conseguiram resistir, e falaram, mais do que daqueles que foram capazes de suportar a tortura, é que a verdade deve ser conhecida. Essa verdade redimirá a alma dos que já se foram e aliviará o peso dos que conduzem, ainda vivos, sua alma dilacerada. Uns por terem sido capazes de resistir, apesar da cicatrizes no espírito, e os outros, por haverem sucumbido ao flagelo da tortura.

Lembrar Camus e seu texto pungente, nestes dias de Natal, pode não ser adequado, mas essas reflexões tristes são necessárias. Ocorre que Cristo foi também torturado - por interesse do Império daquele tempo – até o momento da morte, quando o sofrimento do corpo fez com que a alma perguntasse, na agonia: “Pai, por que me abandonaste?”



Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.


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