terça-feira, 13 de setembro de 2011

Luiz Maranhão, o santo ateu


 Luciano Oliveira - Maio 2008



Heloneida Studart. Luiz, o santo ateu. Natal: Editora da UFRN, 2006. 344p.

O filósofo e humanista inglês Bertrand Russell, num livro pertencente ao gênero das Vidas ilustres de Plutarco, que ninguém mais lê (Plutarco e Russell...), faz a seguinte observação a respeito de certas figuras humanas que viveram sobre a terra: “Todos nós achamos que vale a pena conhecer os grandes heróis do drama ─ Agamenon, Édipo, Hamlet e os demais ─, mas existiram homens reais cujas vidas tiveram as mesmas qualidades que a dos grandes heróis trágicos, e que tiveram ainda o mérito de haver realmente existido” (Retratos de memória e outros ensaios. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, p. 183).


Essa passagem me veio à lembrança ao ler o último trabalho publicado de Heloneida Studart ─ que, sem alarde, deixou-nos em dezembro de 2007: Luiz, o santo ateu. O livro é ao mesmo tempo biografia, homenagem e declaração de amor póstumo a Luiz Maranhão, um dos comunistas brasileiros triturados pelo regime militar em 1974 ─ um momento em que, com a luta armada urbana destroçada e a guerrilha do Araguaia agonizante, já não havia subversão que justificasse a ditadura e seu temível aparato de segurança. O velho PCB, o famoso Partidão, apesar de sempre ter sido contra a sublevação pelas armas, virou uma espécie de reserva de caça dos torturadores do regime. Vários comunistas históricos “desapareceram” nessa época. Luiz Maranhão foi um deles.


Nascido em Natal, no Rio Grande do Norte, em 1921, Luiz Maranhão era um ginasiano de quatorze anos quando irrompeu na sua cidade a sublevação armada que veio a ser conhecida como Intentona Comunista. O menino viu aquilo tudo como se estivesse assistindo a um folguedo. Poucos anos depois, tinha se tornado comunista. Isso que hoje nos parece tão anacrônico, naquele tempo era uma rota legítima e até previsível. Vale a pena não esquecer, ou relembrar, que entre os anos trinta e quarenta ─ período da formação de Luiz ─ a democracia liberal, essa que hoje é praticamente consensual no mundo inteiro, parecia estar com os dias contados. Era considerado um regime fraco, caótico e demagógico, que não conseguia formar governos estáveis e, além disso, não era capaz de cumprir suas promessas ─ inclusive de justiça social. Houve mesmo um momento em que praticamente todos os países que contavam, com exceção da Inglaterra (por ser uma ilha?...) e dos Estados Unidos (por estar distante da agitação européia?...), tinham adotado formas autoritárias de regime: o franquismo na Espanha, o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha... E a França, no rastro da débâcle de 1940, quando praticamente sem luta entregou-se às forças de Hitler, adotou o regime pró-nazista do Marechal Pétain. Até o nosso Portugal tinha o salazarismo...


Isso do lado ocidental do planeta. Do outro, havia a presença impressionante da União Soviética, o primeiro regime socialista do mundo instalado num dos maiores países da terra. E que, pelo menos nessa época ─ é bom relembrar isso às novas gerações ─, parecia funcionar! O stalinismo, malgrado sua brutalidade, tinha feito de uma nação medieval, a Rússia dos czares, uma potência industrial ─ e, ao fim da segunda guerra mundial, uma das superpotências vencedoras. Era o tempo dos grandes engajamentos. 


Quem tinha uma sensibilidade conservadora alinhava-se à direita; quem queria mudar o mundo alinhava-se à esquerda ─ aquela e esta encarnadas em ditaduras. No Brasil, era o tempo de tornar-se integralista ou comunista. A democracia, como hoje a conhecemos, tinha perdido qualquer charme.


Foi nesse contexto que tomou corpo entre nós aquilo que Marco Aurélio Nogueira chamou mais tarde de “sociedade civil comunista”, ou seja: uma proliferação de pessoas e grupos que intervinham em vários domínios culturais e que, malgrado sua adesão às teses do Partidão, eram mais do que simples correias de transmissão de suas diretrizes. Gente de alto prestígio intelectual como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Nise da Silveira, etc., num ou noutro momento, fizeram parte desse amplo movimento de homens e mulheres comprometidos com o ideal de mudanças profundas no Brasil, numa época em que o velho Partido Comunista era um desaguadouro quase natural desses engajamentos.


Tudo isso hoje nos parece insensato. Pode ser. Mas nos parece insensato depois das “duras réplicas da história”, para falar como Hegel. Houve um tempo em que homens de boa vontade ─ para usar uma expressão de ressonâncias bíblicas ─ acreditavam nas virtudes purificadoras da “ditadura do proletariado”. É ligeireza condená-los a partir do nosso desencanto de hoje. Há, na verdade, um anacronismo em jogar sobre o passado critérios de validade do presente. Se hoje estamos advertidos contra a ilusão de que seria fácil instaurar a felicidade sobre a terra através do stalinismo, do maoísmo, do castrismo ─ numa palavra, do “socialismo real”, é porque escrevemos depois do que foi a sua experiência. Temos, em relação a essa geração, o “privilégio” de ter conhecido a realidade que as idéias a que aderiram foram capazes de engendrar.


Aliás, mais cedo ou mais tarde, pelas mais diversas razões ─ inclusive a recusa das duras realidades da geopolítica e sua exigência de uma adesão incondicional à União Soviética ─, o barco do “socialismo real”, que há muito tempo fazia água mas só afundou de vez com a “queda do muro”, foi sendo abandonado por uns e outros. Permaneceram figuras como Luiz Maranhão, que fizeram uma opção pelo Partido Comunista na juventude e nunca o abandonaram.


Há sanidade moral nessa aparente loucura. Luiz, afinal, pela origem e percurso social que foi o seu, só teria a ganhar em deixá-la de lado o mais cedo possível. Oriundo da pequena classe média potiguar, ele diplomou-se advogado e fez uma carreira bem-sucedida como professor, jornalista e político, tendo sido eleito deputado estadual. Seu irmão, Djalma Maranhão, chegou a ser prefeito de Natal. Enfim, acedeu a uma vida bem posta. E no entanto, às doçuras do conforto provinciano, preferiu continuar a linha de vida que o levou à morte nos porões da ditadura militar. Há mistério nessas graves opções. Pelo menos, elas não são explicáveis pelos critérios usuais do interesse. Numa tirada famosa do Manifesto comunista, Marx conclama os operários do mundo inteiro a se unirem na luta revolucionária porque não têm nada a perder, a não ser “os grilhões”. Pois bem, figuras como Luiz Maranhão tinham tudo a perder: prestígio, conforto, sossego. E não hesitaram: perderam!


Disso não se deduza, entretanto, que estamos diante de um daqueles homens de ferro cerrados em torno da visão stalinista do mundo. Luiz Maranhão era uma figura doce, míope, educada. Foi feminista antes do feminismo, e partidário do diálogo entre cristãos e marxistas antes da teologia da libertação. Leitor de Marx, foi também leitor de Teillard de Chardin e de Jacques Maritain, pensadores católicos responsáveis pela abertura da Igreja de Roma às realidades do século XX, e também de um outro pensador francês muito famoso pelo viés religioso que imprimiu ao marxismo, Roger Garaudy, de quem guardou a seguinte frase que sua biógrafa usa como mote do seu livro: “O outro mundo é apenas este mundo que será outro”. O livro de Heloneida ─ ela também uma comunista que nada tinha a ganhar em persistir na sua “loucura” ─ devolve-nos essa vida ilustre que vale a pena conhecer. Nessa debandada geral de valores que estamos vivendo, custa crer que houve no Brasil pessoas desse tipo.


Ar dos tempos...




Gramsci e o Brasil

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