terça-feira, 29 de julho de 2014

Ministério Público 'reprime pobres'


#SalaSocial: Desembargador que libertou ativistas diz que MP 'reprime pobres'

Ricardo Senra

O desembargador Siro Darlan não nega a fama de polêmico. Pelo contrário. Em conversa por telefone com o #SalaSocial, o homem que concedeu habeas corpus a 23 ativistas acusados de promover violência em protestos afirmou que o Ministério Público fluminense "é eficiente na repressão do povo pobre e negro" e que os instrumentos de segurança hoje são "mais invasivos" do que na ditadura. Ele também reclamou da imprensa brasileira. "A grande mídia é financiada pela publicidade oficial. Em contrapartida, dá cobertura a esses interesses."

Em nota enviada à BBC Brasil, o MP rebateu as críticas e afirmou "externar seu mais veemente repúdio" ao desembargador. "Rotular o Ministério Público de 'inutilidade' é ignorar seu importante papel na tutela dos interesses coletivos. Na verdade, é exatamente por exercer com retidão e diligência a tarefa de proteger os direitos sociais, tentando conter o avanço da criminalidade, que a instituição tem colecionado tantos e tão poderosos inimigos", diz o texto [veja a versão completa abaixo].

Denunciados pelo MP, os manifestantes, agora em liberdade provisória, são acusados de formação de quadrilha armada. De acordo com a polícia, o grupo estaria à frente de organizações que se articulariam para promover e estimular confrontos com policiais nas manifestações.

Resposta do Ministério Público

Leia o texto completo da nota do MP do Rio sobre as declarações de Siro Darlan:

"O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, instituição vocacionada à defesa da sociedade, vem externar seu mais veemente repúdio às declarações do Sr. Siro Darlan, que, uma vez mais, presta enorme desserviço ao povo e ao Estado brasileiros. Rotular o Ministério Público de "inutilidade" é ignorar seu importante papel na tutela dos interesses coletivos. Na verdade, é exatamente por exercer com retidão e diligência a tarefa de proteger os direitos sociais, tentando conter o avanço da criminalidade, que a instituição tem colecionado tantos e tão poderosos inimigos.

É preciso não perder de perspectiva que, na difícil tarefa de aplicar a lei, é preciso interpretá-la adequadamente. Alguns o fazem buscando a defesa da sociedade, outros se movem por interesses menos relevantes. E isso se evidencia ao lembrarmos da libertação, em agosto de 2010, decretada pelo ora ofensor do Ministério Público, de dez marginais que haviam sido presos após invadir o Hotel Intercontinental, portando armas de grosso calibre e aterrorizando suas vítimas.

Apesar dos percalços diuturnamente enfrentados, o Ministério Público continuará a zelar pelos interesses que lhe incumbe defender, quaisquer que sejam os detratores de plantão. A inutilidade, por certo, existe, mas em seara outra que não a da instituição."

As prisões preventivas, na opinião dos delegados Alessandro Thiers, da Delegacia de Repressão a Crimes de Internet (DRCI), e Fernando Velloso, chefe da polícia civil carioca, evitariam que atos de vandalismo acontecessem em protestos futuros.

"O direito à livre manifestação é fundamental", argumenta o desembargador, para quem a tecnologia está "sendo usada para a segurança, em detrimento dos direitos constitucionais".

"Estamos sendo fiscalizados, ouvidos, escutados por uma polícia que procura saber sobre a vida de qualquer um", diz. "Provavelmente o que estou falando agora é motivo de escuta."

#SalaSocial: Para comentar as prisões de ativistas investigados pela Delegacia de Repressão a Crimes de Internet (DRCI), o senhor escolheu justamente o Facebook. Por quê?

Siro Darlan: Todo mundo está nas redes, hoje este é o meio de comunicação ao qual temos acesso sem controle [pausa]. Falar de liberdade de expressão no Brasil hoje é bastante complicado. Porque os meios de comunicação mais importantes não usam essa liberdade. Só é endereçado ao público aquilo que interessa financeira, ideológica e socialmente aos donos dos jornais e televisões.

#SalaSocial: Esta é uma crítica à cobertura deste caso específico?

S.D.: Por representar um monopólio, os grandes veículos têm privilégio em detrimento das outras mídias. Há um privilégio econômico aí, porque a grande mídia é financiada pela publicidade oficial. Em contrapartida, dá cobertura a esses interesses oficiais. Diferente de outras nações, aqui há um desrespeito às pessoas que estão sendo investigadas e sobre as quais não há um juízo de condenação. Elas são previamente condenadas pela imprensa. Independente de serem condenadas, então, elas já cumprem penas, porque são expostas. Em países civilizados, só depois do juízo definitivo há divulgação do nome, às vezes nem sai o nome. Porque nome é interesse da justiça, não da comunicação.

#SalaSocial: Os críticos dizem que o senhor teria sido irresponsável ao "libertar terroristas". Qual é sua resposta?

S.D.: Engraçado que eu estava tendo agora um debate no Whatsapp sobre isso com um bispo. Ele dizia exatamente isso. Eu disse para ele: 'Coincidentemente, bispo, Cristo também foi chamado de terrorista'. Ele disse que Cristo pregava o amor. Eu falei: 'Depende de que modalidade o senhor esta falando. Há o amor à igualdade social, à justiça, ao próximo, de forma que o conceito precipitado que o senhor está tendo, chamando suspeitos de terroristas, vai contra a religião que o senhor prega'. Não se pode colocar a carroça na frente do burro.

#SalaSocial: Os delegados argumentam que as prisões temporárias evitariam atos violentos em protestos futuros.

S.D.: Neste caso concreto, a acusação é de quadrilha. A pena é de um a três anos, podendo ser dobrada. Nossa legislação diz que qualquer condenação até quatro anos pode ser substituída por penas alternativas se houver bons antecedentes. Num cenário pior, se esses suspeitos forem condenados, sequer serão recolhidos à prisão. Supondo que a pena seja de dois anos, ela será substituída por penas alternativas. Então, qual a justificativa para uma prisão antecipada? É uma coisa kafkaniana 'prender alguem para evitar'.

#SalaSocial: O senhor afirmou que a única acusação aos manifestantes seria "o delito de quadrilha armada – artigo 288". Este mesmo artigo foi modificado em agosto do ano passado, logo após o início dos protestos de junho.

S.D.: Apesar de vivermos em uma democracia, esta democracia sofre cerceamentos de acordo com as circunstâncias. O governo e seus aliados atuam de acordo com interesses circunstanciais e alteram a legislação a partir disso. Isso traz insegurança. Qual o interesse dessas alterações? O interesse é evitar que a população se manifeste. O Estado é apenas uma representação da vontade do povo, isso está na Constituição. Mas há pessoas que não se conformam e têm aquele vício da ditadura. Acham que, porque foram outorgados a um mandato eletivo, podem se transformar em ditadores ocasionais.

#SalaSocial: Principal ferramenta desta investigação, a nova lei permite que delegados e que o MP tenham acesso a dados sigilosos de entidades financeiras, telefônicas e empresas aéreas sem necessidade de autorização judicial. Como avalia?

S.D.: A privacidade é um direito fundamental, mas entre o direito à privacidade e a segurança, está prevalecendo a segurança. Os instrumentos de segurança estão invasivos, até mais que na época da ditadura, por uma questão de desenvolvimento das comunicações. Na época dos militares, não tínhamos a tecnologia de hoje. Essa nova lei contraria os direitos do cidadão. O Ministério Público é uma inutilidade. Ele é muito eficiente quando lhe interessa. Mas há situações em que o MP se omite. Hoje estamos com prisões superlotadas porque o MP é eficiente na repressão do povo pobre, do povo negro. 70% do sistema penitenciário do Rio de Janeiro está vinculado a crimes de drogas, o que efetivamente não tem nenhuma periculosidade. Vender droga ilícita é absolutamente igual ao camarada que vende cachaça. São drogas. Mas a nossa sociedade resolveu criminalizar a venda de determinadas drogas. E coincidentemente quem vende é a população mais pobre. Isso coincide com o interesse de exclusão social dessa população.

#SalaSocial: Nesse caso, os presos são de classe média.

S.D.: A pessoa passa a sentir na pele. Sinto isso como juiz: se absolvo um pivete, um favelado que roubou, estuprou, a classe média reclama. Quando o mesmo acontece com o filho dela, lá vêm as justificativas. Dizem que o filho precisa de psicólogo, que está se descobrindo. Enfim, usam argumentos justos e que deveriam valer para todos, e não só para os filhos da classe média. Acho interessante que este grupo esteja experimentando a violência policial que os pobres já sofrem há muito tempo para que haja uma reação.

#SalaSocial: O senhor acha que a liberdade de manifestação está assegurada no Brasil?

S.D.: Constitucionalmente está assegurada. O direito à livre manifestação é um direito fundamental. Mas, na prática, temos um aparato policial que ainda resguarda os resquícios de um período de ditadura. E esse aparato está à disposição do governante para atuação inclusive contra a lei, vide a violência com que o aparato policial agride toda e qualquer forma de manifestação. Isso inclui o cidadão comum, porque estamos sendo fiscalizados, ouvidos, escutados, por uma polícia que procura saber sobre a vida de qualquer um. Provavelmente o que estou falando agora é motivo de escuta. Não há controle. Até a presidente foi escutada por interesses de outra nação.

#SalaSocial: Qual é sua opinião sobre o pedido de asilo no Uruguai por uma das acusadas?

S.D.: Um exagero. Um sinal de desespero também. Não podemos chegar a esse ponto de imaginar que é uma questão de presos políticos porque as instituições estão funcionando. Policia e MP fizeram seu papel, bem ou mal. Não houve situação de exceção. Você pode contestar, discutir, debater sobre os métodos, mas em nenhum momento pode dizer que as instituições não estão funcionando. Tanto que se concedeu a liberdade agora.

#SalaSocial: O senhor costuma ser classificado como "polêmico", graças à atuação como juiz da Vara de Infância e Juventude e, agora, por dar liberdade provisória aos presos. Concorda?

S.D.: Não tenho nenhuma contestação a fazer pelo seguinte: eu fui promovido a juiz da infância e juventude em 1990, ano em que entrou em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente. Temos uma tradição de maltratar crianças. A mistura que gerou a sociedade atual sempre foi negligente e violenta com as crianças, é só ver os índices. A resistência à Lei da Palmada é um exemplo. Recebi a incumbência em uma cidade violenta como o Rio de implantar o Estatuto. E toda medida era uma novidade, e toda novidade era uma polêmica. Cuidar para que modelos não fossem exploradas por empresários do mundo fashion e não fossem depois jogadas como sapatos velhos é uma medida polêmica, nunca tinha sido feito isso. Logo, o que é inédito se transforma em polêmico. Não contesto isso. Chamo de fidelidade ao compromisso com a causa. Todas as minhas decisões têm essa coerência – procurar fazer a justiça dentro de minha formação cristã. Não mudou nada.


BBC Brasil 

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