terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O SUS e a agenda por resgatar: dois passos atrás e um adiante na reforma sanitária


Professora da UFRJ defende a necessidade de um novo rumo na política de saúde, retomando a agenda ampliada proposta pelos sanitaristas que nortearam a criação do Sistema Único de Saúde como direito universal

Ligia Bahia

Dependência química, entre prioridades de uma reforma sanitarista que encontra resistências no país

Em se tratando de saúde pública no Brasil, o ano de 2013 teve como principal marca o programa Mais Médicos, que graças a dupla demonstração de menosprezo de entidades médicas perante a situação de desassistência da população e à solução encontrada de importar profissionais formados fora do Brasil, notadamente os cubanos, polarizou o debate e reduziu a agenda da saúde a um único ponto de pauta.

No que se refere ao que se denomina Movimento da Reforma Sanitária houve mudanças extensas e profundas ao longo do ano passado. As duas principais em ordem de importância e encadeamento foram a adesão de importantes sanitaristas a políticas antirreforma e a saída de militantes da Reforma Sanitária ligados ao PT de cargos nas secretarias de governos do PSB.

A concordância tácita ou ativa de determinados militantes com a internação compulsória para viciados em crack representou uma mudança radical nas normas implícitas de acomodação de movimentos, tendências e pessoas sob a etiqueta militante da Reforma Sanitária. As polêmicas sobre a epidemiologia e formas de atuação dos órgãos oficiais da saúde demarcaram uma clivagem entre aqueles que se mantiveram a favor da autonomia dos cidadãos e os que se somaram ao surto de recrudescimento de um higienismo de negócios.

Os desdobramentos da inflexão de posicionamento de determinados sanitaristas podem ser facilmente identificados tanto no que diz respeito à agenda emancipatória, quanto nas ações referentes aos embates mundiais da saúde pública com a indústria, a exemplo do recuo do Ministério da Saúde em levar adiante propagandas sobre doenças sexualmente transmissíveis com conteúdos considerados "pecaminosos" por bancadas parlamentares religiosas e permissividade e até estimulo à propaganda de alimentos infantis ultraprocessados.

Os conflitos em torno da comercialização do anoxerígeno sibutramina explicitaram, didaticamente, uma divisão que altera a geometria dos alinhamentos progressistas versus conservadores: os dois projetos parlamentares apresentados em 2013 que questionam o uso do medicamento, proibido nos EUA e Europa desde 2010, são do PT (deputado Candido Vacarezza) e do PSB (deputado Beto Albuquerque), então duas lideranças da base do governo. Esse novo traçado se estendeu para outras polêmicas, desde as que envolvem o uso disseminado de agrotóxicos e transgênicos até as constantes ameaças ao reconhecimento e garantia das terras dos povos indígenas.

O fenômeno de ruptura das alianças em torno da Reforma Sanitária ficou escancarado com a manobra para reprovar o PLP 321/2013, que reuniu mais de dois milhões de assinaturas, para aumentar recursos para a saúde. Parlamentares do PT, que se autointitulam lideranças dos processos de implementação do SUS, ao relatarem o projeto propuseram a volta da CPMF (agora CSS) e a destinação de 15% em 2017 da receita líuida da União em vez de 10% da receita bruta, conforme o teor original da iniciativa popular.

O balde de água fria nas esperanças de obtenção de recursos para efetivar o SUS universal e de qualidade foi intensificado com a Medida Provisória 619 que anistiou as empresas de planos e seguros de saúde do pagamento de vultosas dívidas tributárias e as isenta na prática de pagar PIS e Cofins. Turbinar a dinâmica de restrição e investimentos de recursos no SUS e no setor privado assistencial respectivamente resulta em uma política de saúde inexoravelmente desfavorável à Reforma Sanitária.

Certamente, o contraponto à cristalização de um sistema de saúde segmentado e submissão da agenda da saúde a transações político-partidários também pautadas pela lógica mercadológica, veio das manifestações nas ruas. O cânone neoliberal, reapresentado sob a faceta da existência de uma nova classe média contra o SUS, foi fortemente questionado.

O eterno receituário para a saúde baseado na resolução do problema da gestão (leia-se privatização) e focalização mostraram-se frágeis diante de imensos movimentos reivindicando saúde e educação públicas de qualidade. Contudo, a força de um agente de mudanças tão expressivo não foi suficiente para reverter a direcionalidade das políticas de saúde. Embora o programa Mais Médicos não obedeça à lógica, cara aos inimigos da universalização, de subsidiar a demanda e represente uma ampliação da oferta pública, não houve mudanças na modulação da política de saúde.

É preciso considerar que o movimento das ruas emergiu em um contexto de realinhamento do movimento sanitário, que mais uma vez se dividiu no apoio entusiasmado de alguns sanitaristas ao programa Mais Médicos e na ponderação de outros sobre seus limites.

Observa-se um gradiente de apoio ou rejeição à diversas iniciativas do governo federal com dois polos nítidos. No primeiro situam-se sanitaristas que ocupam cargos que tendem a aceitar de mau ou bom grado imposições, inclusive de natureza não técnica em temas sobre os quais as evidências científicas são abundantes. No segundo misturaram-se oposicionistas, oportunistas e alguns agrupamentos corporativistas. Os embates entre esses posicionamentos extremos tem sido superficial e rarefeito em termos de densidade propositiva.

O projeto da Reforma Sanitária e os processos para alcança-lo tem sido omitidos ou perderam relevância em função de uma militância que parece incapaz de matizar as necessidades de saúde com a racionalidade da reprodução das máquinas partidárias.

Cabe aos muitos sanitaristas que não se identificam nem com os posicionamentos apologéticos sobre as políticas governamentais, nem com as críticas levianas, a tarefa de recompor as bases da aliança progressista responsável pela aprovação do texto constitucional e levar adiante a reflexão e a implementação da Reforma Sanitária Brasileira.


* Ligia Bahia é professora no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e integrante da rede Plataforma Política Social.

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