sexta-feira, 31 de maio de 2013

Machado de Assis, o maior escritor da literatura brasileira



Otto Maria Carpeaux

Machado de Assis, o maior escritor da literatura brasileira, não é exótico em relação à Inglaterra, e sim em relação ao Brasil. O caso é enigmático: um mulato de origens proletárias, autodidata, torna-se o escritor mais requintado da sua literatura, espírito cheio de arrière-pensées, que exprimiu menos em versos parnasianos do que em romances meio satíricos à maneira de Thackeray. Em Machado de Assis havia várias influências estrangeiras, e são justamente as influências inglesas que o distinguem dos seus patrícios, em geral afrancesados: Swift e Sterne, sobretudo. Mas influências não explicam o gênio. Machado de Assis também tem algo em comum com Jane Austen, que não conhecia, provavelmente. A sua formação talvez fosse mais francesa do que aquelas influências deixam entrever. Dos moralistes franceses provém a sua desconfiança extrema com respeito à honestidade dos motivos dos atos humanos – a sua psicologia é, em geral, a de La Rochefoucauld; parece ter conhecido Leopardi – menos o poeta do que o pensador das Operette morali – ao qual o ligavam o epicureísmo, no sentido grego da palavra, e o cepticismo niilista em face do universo; leituras de Schopenhauer fortaleceram-lhe a visão negra e quase demoníaca dos homens e das coisas; mas sempre sabia exprimir-se com a urbanidade reservada e irônica de um “homme de lettres” do século XVIII. Tudo isso parece incrível num mulato autodidata do Rio de Janeiro semicolonial da época.

Contudo, podem-se alegar, além da particularidade do gênio que resiste à análise, algumas razões de ordem política e econômica: o Império do Brasil de 1880 era semicolônia da Inglaterra vitoriana. Machado de Assis, proletário e “half-breed”, alto funcionário e presidente de uma Academia de Letras, é um grande escritor vitoriano. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro não têm que recear a comparação com Thackeray; falhas de coerência na composição novelística, que uma crítica de formação francesa apontaria, não são defeitos tão graves em romances de tipo inglês, se bem que em língua portuguesa. O sentido de forma latino do mulato latinizado revelou-se melhor nos contos. “O Alienista”, “Noite de Almirante”, “Missa do Galo”, “O Espelho” são espécimes magníficos de um gênero que esteve, aliás, mal representado na literatura inglesa do século XIX. Há quem goste dos versos de Machado de Assis; mas a sua verdadeira poesia está antes na atmosfera, meio irônica, meio fúnebre, que envolve os berços e os leitos de morte dos seus personagens; até uma crônica sobre o “Velho Senado” acaba com as palavras resignadas e maliciosas: “Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo, mas não vale; todos os cemitérios se parecem.” O humorista céptico “só sabia olhar a vida sub specie mortis”, e por meio desse “só” ele superou as limitações vitorianas, tornando-se atual para todos os tempos. Histórias sem Data chama-se um volume de contos seus, e “sem data” é a sua obra inteira.

História da Literatura Ocidental, Otto Maria Carpeaux. Parte VIII- A época da classe média, Capítulo I - Literatura Burguesa. Ed. Leya, 2011.

Pombonavegante

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...