quinta-feira, 21 de junho de 2012

“Fantasma” de Garcia Roza revela o invisível, uma sem-teto.


Em 'Fantasma', testemunha de crime é uma sem-teto frágil e sonhadora
Novo livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza dá visibilidade a personagens habitualmente desprezados

Tasso Marcelo/AE

Quase ninguém nota a mulher sentada à beira de uma calçada, em Copacabana, no Rio, ainda que ela tenha decidido morar naquele espaço. Conhecida como Princesa, por conta do fino trato, a mulher, no entanto, ganha enorme visibilidade ao se transformar na principal testemunha do assassinato de um homem, talvez um estrangeiro, que apareceu morto a alguns metros dela. Eis o ponto de partida de Fantasma, novo romance policial de um expert, o também psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Desde que trocou a rotina acadêmica para se dedicar à ficção policial - a estreia aconteceu em 1996, com O Silêncio da Chuva -, Garcia-Roza tornou-se especialista em tramas policiais que fogem do riscado tradicional. Assim, Espinosa, seu detetive, é um protagonista excêntrico, no sentido de não estar bem encaixado em lugar nenhum.

E, além de uma escrita econômica e precisa, que chamou atenção até do jornal New York Times, Garcia-Roza envereda por espaços originais. É o caso de Fantasma, que dá visibilidade a personagens habitualmente desprezados, como os sem-teto. E é o caso especial de Princesa, a provável testemunha do crime, que se perde em devaneios, confundindo sonho e realidade, o que torna suspeita sua versão do crime. Sobre esse dualismo - e também sobre a literatura policial -, Garcia-Roza respondeu, por e-mail, as seguintes questões.

Como surgiu a história de Fantasma: foi a partir de uma vontade de dar voz a pessoas consideradas invisíveis pela sociedade?

Sim, não só de torná-las visíveis pela palavra como também de dar voz a essas pessoas. A história foi sendo tecida a partir de cenas vistas por mim nas ruas de Copacabana e do centro, cenas que serviram de matéria prima para o esboço original da narrativa; o restante foi fruto da imaginação e do entendimento.

Espinosa, dessa vez, revela interesse pela teoria dos objetos inexistentes do filósofo austríaco Alexius Meinong. É curioso como a tese se encaixa, de uma certa forma, em uma investigação policial à medida que ambas tratam de algo inexistente, não?

É verdade, principalmente em se tratando do delegado Espinosa, que frequentemente permite que o entendimento seja invadido pela imaginação dando lugar a raciocínios pouco ortodoxos para um delegado de polícia, criando objetos, pessoas e situações que estão no limite entre o ser e o não-ser. Mas a própria ficção, e não apenas a ficção policial, pertence à essa região do espaço habitada por objetos que subsistem mas não existem em si mesmos, como aqueles de que nos fala Alexius Meinong: Sherlock Holmes é um desses seres... assim como Moby Dick... ou o triângulo retângulo.

Desculpe minha desconfiança, mas até que ponto Princesa é realmente indefesa e vulnerável?

Desculpe minha franqueza, mas até hoje eu não sei. Devo dizer que sua suspeita é perfeitamente justificável, assim como é justificável a suspeita do delegado Espinosa quanto aos relatos dela serem verdadeiros ou não.

O parentesco profundo entre a literatura de suspense e a psicanálise estaria no fato de que há sempre, em ambas, uma verdade encoberta a ser desvendada?

Certamente. Ambas partem do princípio de que a verdade não é algo que se oferece docilmente ao olhar ou à escuta. O psicanalista e o detetive das novelas policiais empreendem a busca de algo que está para além do dado imediato entendido como evidência sensível. É esse "dado" que tanto o psicanalista como o detetive concordam que mais oculta do que revela a verdade. É na e pela palavra que analista e detetive vão empreender suas buscas, seja no caminho do desejo inconsciente seja no caminho da descoberta do criminoso. A diferença entre o psicanalista e o detetive reside no fato de a busca do psicanalista ser uma busca da verdade do desejo inconsciente do paciente, desejo este que se insinua distorcido na fala do paciente como um enigma a ser decifrado, enquanto que, na novela policial, essa busca é fictícia. O romance policial - como o romance em geral - é uma ficção: pura criação. O romance enquanto tal não se caracteriza pela busca da verdade ou do verdadeiro. Mas por ser criação e não busca, isto é, por ser produção do novo e não procura de algo existente, a ficção literária é sempre verdadeira, isto é, está para além da oposição verdade/falsidade.

Leonardo Sciascia usava o suspense como veículo para falar sobre questões de identidade. O que você pensa disso?

Faz muito tempo que li Leonardo Sciascia e me lembro vagamente das histórias mas não me lembro do uso que ele faz do suspense para falar da identidade. Posso quando muito imaginar que nele o suspense funcione como elemento aglutinador impondo às multiplicidades dispersas uma certa "mesmidade", tanto no que se refere aos personagens como no que se refere às passagens da história, resultando daí uma identidade. Mas esta é uma opinião lançada a partir do vazio da memória. Provavelmente não se aplica à produção literária de Leonardo Sciascia.

Muitos escritores acreditam que o romance, como é visto hoje, mesmo nas suas formas menos clássicas, deve muito ao policial, que sempre manteve a necessidade de categorias muito claras: personagens, investigação, demanda, conclusão. Você concorda?

Quando Edgard Allan Poe inventou o conto policial, com Os Crimes da Rua Morgue, inventou também o leitor de histórias policiais. E, assim como criou um gênero literário que se tornou clássico, criou também um tipo de leitor "clássico". Esse é um leitor que se move no espaço da suspeita (não é por acaso que nasce na mesma época em que Freud está dando os primeiros passos na criação da psicanálise). De certa forma, o romance atual, senão o leitor atual, conserva os elementos estabelecidos por Edgard Allan Paul em Os Crimes da Rua Morgue.

TRECHO

“Espinosa desceu pela escada os três andares do prédio onde morava, carregando uma sacola com livros, remédios e objetos de uso pessoal. Atravessou o hall de entrada, abriu a porta da frente, mas antes mesmo de ultrapassar o jardinzinho e chegar à calcada deu meia-volta e entrou de novo no edifício. Depositou a sacola sobre uma mesa no vestíbulo e tirou o paletó. Protegido do olhar de estranhos, puxou a arma enfiada no cós da calça e colocou-a dentro da sacola. Em seguida distribuiu entre os bolsos da calça os pertences que estavam nos bolsos do paletó. Feito o novo arranjo, saiu levando na mão o paletó e a sacola. Era o melhor que podia fazer, já que precisava andar armado e usar terno numa cidade em que no verão, às oito da manhã, a temperatura já ultrapassava os trinta graus. Enquanto cruzava a praça do Bairro Peixoto, pequeno enclave no centro de Copacabana, a caminho da 12ª DP, pensava na pergunta que fizera a si mesmo na noite anterior e que lhe ocorrera outra vez no café da manhã: o que levaria um conceituado filósofo e lógico a elaborar uma teoria de objetos não existentes?"

Estadão

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