sábado, 20 de novembro de 2010

FHC: "Somos todos mestiços, senão de sangue, de alma"



Fernando Henrique Cardoso

A oportunidade de nova edição do livro organizado por Emanoel Araújo, A mão afro-brasileira, oferece-nos mais uma fresta, melhor dito, uma porta escancarada para reavaliarmos a contribuição dos descendentes de africanos e dos mestiços em geral para a formação de algo que se pode chamar de "cultura brasileira". Conceito esquivo, este de cultura brasileira, mas essencial para melhor sabermos donde proviemos, o que somos e o que ainda poderemos fazer no futuro com a base cultural que criamos nestes cinco séculos de presença multirracial e multicultural no Brasil.

Houve tempo em que esteve na moda, repetindo Paulo Prado, dizer que somos o fruto de "três raças tristes", tal como fomos descritos em Retrato do Brasil, publicado em 1928. Será? Paulo Prado escreveu seu livro famoso depois da Semana Modernista de 1922 e era colega de Mário de Andrade, que, em Macunaíma, pinta uma imagem marota do brasileiro, mas não triste. Talvez por trás das observações de Paulo Prado, que fizeram tanto sucesso na época, subsistisse, sem que o autor quisesse ou talvez nem mesmo se apercebesse, a falta de confiança no futuro em uma nação composta por "três raças". Se pelo menos fosse uma só, e se esta fosse branca, no máximo com alguns salpicões indígenas, quem sabe poderíamos ser depositários de maiores esperanças...

Se essa era (e ainda é em alguns círculos) a atitude dos bem-pensantes, sobre as raças formadoras do Brasil e sua miscigenação, é inegável que nas décadas recentes a inclinação das avaliações mudou. Acho que o autor paradigmático dessa mudança recente, seguindo as pegadas de Gilberto Freyre, que, desde décadas antes, proclamava as virtudes da mescla, foi Roger Bastide. Francês que se dispôs a entender o Brasil a partir da "luneta africana", como escreveu, fala da "interpenetração de civilizações" para descrever o que outros chamavam de sincretismo religioso. Com a ideia de civilização, e não apenas de culturas (quer dizer, de modos de pensar, sentir e fazer), mostrava "os grandes feitos", materiais ou não, os resultados das culturas em contato. Foi outro francês, Pierre Verger, quem nos ensinou o quanto de "africano" havia em nossa cultura, ou melhor, como nos apropriamos dos saberes, artesanias, sensibilidades que vieram da África. Olhando as fotos de Verger, ora tiradas na Bahia, ora no Benim, qual de nós, sem ler a legenda, seria capaz de dizer "essa foi tirada no Brasil, aquela na África"? Qual de nós identificaria nos objetos rituais algo de "propriamente brasileiro". Mas haverá tal coisa, algo propriamente brasileiro?

Há, só que o que nos é próprio é precisamente a interpenetração das civilizações. Não podemos falar de uma "cultura negra" no Brasil como quem sabe os americanos possam, referindo-se ao que ainda hoje existe nos Estados Unidos, uma identificação à parte de cada uma das suas culturas. Tampouco de uma "cultura branca". Isso, de "música de negros" - como Sergio Cabral mostra em seu ensaio neste livro -, era o olhar do branco preconceituoso. O negro, o mulato, discriminados, embora escravizados mesmo, pouco a pouco venceram culturalmente os vencedores sociais: a música "deles" é a nossa. Tomara que a "nossa" seja deles. Mas haverá, culturalmente falando, um nós e um eles? Socialmente, nas hierarquias e distinções, a marca da sociedade escravocrata, como antevia Joaquim Nabuco, não se extinguiu com a Abolição. Mas a cultura se misturou mais que o sangue, em um povo racialmente bastante mesclado.

É só folhear este admirável livro para que o leitor se dê conta de que muito do que é o "orgulho de nossa cultura" nasceu de mãos e cérebros negros ou mulatos e, se alguém se der à pachorra de pesquisar, verá também que muito do que foi incorporado à produção cultural que primevamente era negro, como o samba, é obra dos brancos da terra... Mais significativo do que tudo, este livro mostra a abrangência da presença negra e mulata no tempo, no espaço e na diversidade das contribuições culturais. Da escultura, quase todos sabem, Aleijadinho e mestre Valentim são ícones da nacionalidade. Mas e o resto? A música sacra das Minas Gerais, de Goiás ou do Rio não expressa a espiritualidade "católica" dos afrodescendentes? Que dizer das pinturas admiráveis do barroco "brasileiro", isto é, afro-português e até ameríndio, transposto como "coisa nossa", porque, de fato, tornou-se marca brasileira - que se espalha por todo lado - de Minas, Rio, Bahia, Pernambuco, Maranhão e até de São Paulo? E não foi Carlos Lemos quem mostrou neste livro o talento de outro arquiteto, o Aleijadinho paulista Joaquim Thebas, ele próprio ex-escravo? E a santaria "brasileira", ora de molde português, ora de pura inventiva ingênua, não teve tantas mãos de escravos, ex-escravos e seus descendentes?

Seria longo o desfilar das proezas de nossos artistas, dos carpinteiros, marceneiros, ferreiros, ourives que das artesanias passam à arte num sopro de sensibilidade. É só folhear o livro.

Não quero terminar sem uma palavra de sociólogo; esta coletânea mostra também a "ascensão social" do ex-escravo, do negro e do mulato. Se, no século XVIII, o barroco domina tudo, se são as corporações de ofício as que contratam obras, é por intermédio delas que os excluídos da sociedade dos brancos buscam se classificar.

Não consigo deixar de mencionar uma reminiscência: foi em Ouro Preto, em 1954, que eu e Ruth Corrêa Leite, minha mulher, começamos a aprender a admirar a arte feita por alguns destes, que ora gabamos, e, com Gilda de Mello e Souza, que nos guiava naquelas paragens, quando fazia uma pesquisa sobre o tema, conseguimos aprender também que as irmandades dos negros e mesmo as confrarias religiosas em geral eram portas de entrada para a ascensão social dos ex-escravos. No século XIX, como se vê nos capítulos correspondentes deste livro, foram as academias de belas artes que cumpriram este papel. Já no século XX, além da música e dos esportes, a própria literatura escrita por mulatos se incorporou à "cultura brasileira", que é a cultura de todos nós, independentemente da cor de nossa pele.

E por falar em cor da pele, esta coletânea não deixa de mostrar como, ao lado da continuidade da presença negra e mulata, até nossos dias, na escultura, na pintura, nas letras ou onde mais haja contribuição cultural, também houve certa continuidade na dissimulação dos vestígios de sangue africano. Sem propriamente denunciar, o livro mostra que alguns artistas, escritores e políticos, de visível mestiçagem, preferem calar sobre suas origens ou não se referir em suas obras e ações a tal marca. Debalde, tantas são as misturas que formam o arco-íris nacional e tão crescentemente se valoriza exatamente não só a interpenetração das civilizações, mas das "raças", conceito abalado nas ciências. Melhor seria proclamar de uma vez que quase todos somos mestiços, se não de negros ou de índios, das várias tonalidades de pele, de sangues e de elementos culturais que provêm do mundo afora, Europa e Ásia incluídas.

A esse respeito, uma pequena história conclusiva: o papa João Paulo II visitou o Brasil quando eu ainda exercia a presidência. Ao chegar ao aeroporto do Galeão, no Rio, onde fui recebê-lo, ajudei-o a impedir que a brisa constante levasse do púlpito as páginas de um primoroso discurso. Nele, o Santo Padre fustigava tudo que fosse discriminação e desprezo pelos indígenas e pelo direito que têm ao uso de suas terras. No dia seguinte tive o prazer de receber o papa no Palácio das Laranjeiras.

Antes de o levar à presença de dezenas de convidados, recebi-o só com meus familiares e, em amável conversa, houve referência a seu discurso. Elogiei-o, pois era uma página em defesa dos direitos humanos, mas ponderei que no Brasil a questão mais numerosa, embora nessa matéria não se deva contar por números, era a questão dos negros e seus descendentes, posto que cerca de metade da população é composta por estes. Para ser mais convincente, tomei as mãos do Santo Padre e aproximei as minhas das suas. Perguntei-lhe, fazendo-o olhá-las: o senhor é branco, alvíssimo, disse. Acredita que minha pele seja igual à sua? Não foi preciso ouvir a resposta.

Um sorriso bondoso anuiu com o significado do que eu queria transmitir-lhe. De um jeito ou de outro, somos todos mestiços, senão de sangue, de alma.


Terra

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