sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Viúva fala de Saramago: Pelo direito à heresia e à dissidência



A voz soava rouca, o corpo exibia magreza aguda, mas as ideias continuavam afiadas - na última vez que esteve no Brasil, em 2008, o escritor português José Saramago ainda convalescia de uma doença que quase o matou na época. Mesmo assim, fez questão de vir lançar A Viagem do Elefante. 'Ele amava os brasileiros', conta Pilar Del Río, com quem o autor, que morreu em junho aos 87 anos, foi casado.

Ela participaria nesta quarta da homenagem a Saramago, no Sesc Vila Mariana, reunindo leitores ilustres, como Chico Buarque de Holanda, além da direção de Daniela Thomas. O evento marcaria também o lançamento de As Palavras de Saramago (Companhia das Letras), seleção de trechos de entrevistas. Sobre a importância dessas palavras, Pilar respondeu, por e-mail, às seguintes perguntas.

O Estado de S.Paulo: Em uma entrevista ao Estado quando da morte de Saramago, o crítico americano Harold Bloom disse que o escritor português se tornou um homem iluminado ao conhecer a senhora e ao se mudar para as Canárias.

Pilar del Río: Agradeço as palavras do professor Bloom, mas confesso não ter influenciado nenhuma obra de Saramago. Pode ter ocorrido - porque todos nos influenciamos mutuamente - em aspectos concretos da vida prática, mas não na obra: escrever é um ato solitário, o autor utiliza sua bagagem pessoal, em silêncio, sem intromissões. Fechado em si mesmo. E, no caso de Saramago, com uma honestidade extremada, maravilhosa.

Estadão: A relação de vocês contrastava com a frieza em muitos temas dos livros dele e até com a sua descrença na humanidade. Como explicar isso?

Pilar: Sua vida pessoal não tinha nenhuma relação com sua visão de mundo e suas reflexões. Saramago não reduzia a obra e a vida a seu pequeno entorno, mas além do lar estava o inferno sobre o qual ele refletia, inferno que, para muitos, é a vida, quando poderia ser melhor. Saramago não entendia como o homem, capaz de chegar a Marte, não conseguia resolver o problema da fome ou da falta de água em diversos continentes. Ou que houvesse depredadores entre os cidadãos, tão variados, mas sempre infames.

Estadão: Apesar de sua veemente posição política (ele se descrevia como um 'comunista hormonal'), Saramago não foi um autor de uma obra abertamente política, não?

Pilar: Saramago não utilizava a literatura para passar mensagens políticas. Era um cidadão comprometido com uma forma de ver e analisar o mundo, tinha causas e partidos, mas isso não influenciava seu trabalho literário, ainda que fosse evidente que seus livros não são de um conservador de direita.

Estadão: Ele sempre pareceu estar feliz quando vinha ao Brasil. Qual a relação dele com o País?

Pilar: Uma boa relação porque sempre se sentia rodeado de amigos e, no Brasil, tinha muitos, além de muitos leitores. O que não significa que não se sentisse incomodado com algumas situações, que a pobreza não lhe despertasse um sentido de urgência, que os sem-terra não o motivassem, que não o desgostasse o abismo entre uns e outros.

Ele ficou contente com a escolha do Rio para ser sede da Olimpíada porque, dizia, incentivaria o trabalho. Para Saramago, esse direito era questão indiscutível. Politicamente, acompanhava de perto o que se passava e sempre, a despeito das conquistas internacionais do País, esperava por mais e melhores notícias internas. Gostava muito do Brasil e demonstrou isso vindo aqui para o lançamento de A Viagem do Elefante, quando quase já nem podia com a própria alma. Amava, sobretudo, muitos brasileiros.

Estadão: Haveria um livro de sua preferência entre os escritos por Saramago? Por quê?

Pilar: Viagem a Portugal. Porque ali cabem Saramago e Portugal. E estamos todos, seres humanos, representados.

Estadão: Qual é o principal legado de José Saramago, em sua opinião?

Pilar: Seus livros, que são monumentos. Mas, à margem deles, que o próprio Bloom qualificou como você sabe e eu, por pudor, não repito, sobressai sua atitude diante do mundo. Era um transgressor, que não se calou para não incomodar. Dizia sempre o que pensava, propôs questões fundamentais e tratou de encontrar respostas. Afirmou que faltavam dois pontos à Declaração Universal dos Direitos Humanos: o direito à heresia e à dissidência. Ser dissidente para não se acomodar. Ser herético para não ser calado por dogmas. Um belo plano, não?

Com o Estado de S.Paulo
Vermelho

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