quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Reaprender a Escutar.


“As fake news denunciam nossa ingenuidade e a facilidade com a qual nos deixamos enganar”, diz psicanalista

Sob a influência de mentiras fabricadas com financiamentos empresariais milionários, os brasileiros vão às urnas eleger democraticamente quem governará o país pelos próximos anos

Ana Helena Rodrigues

Em períodos eleitorais é comum que o embate de ideologias cause conflitos entre os que se propõe a discutir política.

Nesta eleição, especialmente, o Brasil tem vivido uma polarização exacerbada por discursos de ódio e intolerância lamentavelmente legitimados por um candidato que se posiciona contra as liberdades individuais e os direitos das minorias. Os que se dedicam a defender as instituições democráticas e os direitos humanos afligem-se perante o apoio popular a um indivíduo cuja principal promessa de campanha é exterminar o adversário, identificado por ele não só como seu inimigo de campanha, mas como inimigo de toda a nação. Na ânsia de entender por que, mais uma vez, o Brasil está caindo na armadilha fascista que se promete salvação da pátria, o Instituto Vladimir Herzog conversou com o psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker.



Leia abaixo a entrevista completa:



IVH – Pela terceira vez em menos de 100 anos, o Brasil está se rendendo ao discurso autoritário que promete salvar o país. Por que isso está acontecendo novamente?

Há vários processos que entraram em uma espécie de constelação. Uma descontinuidade institucional, quer pela forma como se deu o impeachment, como pela forma como a Operação Lava-Jato tornou-se paradigma para a renovação de práticas institucionais. O sentimento de injustiça, comum à direita e esquerda e o ressentimento e o ódio subsequente animaram fantasmas mal resolvidos de outra descontinuidade histórica: a ditadura militar, os efeitos não tratados da violência (policial), a emergência de ideólogos conservadores (contrários aos costumes universitários), a partidarização do judiciário, da imprensa e de outras instâncias de mediação. O Brasil repete traumaticamente as tentativas de implantação de um liberalismo esclarecido. Ou seja, toda vez que isso foi tentando, o projeto foi apropriado por forças pré-modernas, que não toleram mais equidade. Foi assim com Vargas e com o golpe de 1964. Pode se repetir agora.



IVH – Como explicar o apoio de mulheres, homossexuais e negros a um candidato abertamente machista, homofóbico e racista?

Há uma obstrução da conversa e uma degradação da palavra que, reunida com o ódio ao inimigo (o PT), fez com que minorias não levem a sério o que o candidato diz. Na psicanálise sabemos os perigos de oscilações entre enunciados e enunciações ou de alternâncias entre falas “sérias” e testes de fidelidade identificatória.



IVH – Por que algumas pessoas são contra as liberdades individuais e desejam viver sob o comando de um estado autoritário que promete reprimir as minorias e tirar direitos?

A liberdade, como dizia La Boetie, é um bem ao qual damos o devido valor quando a perdemos. A democracia cansa, lentifica, tem dificuldades para lidar com os efeitos colaterais deste processo. 32 milhões de pessoas entraram na “conversa democrática”, quer porque saíram da pobreza, quer porque ingressaram na rede de opiniões digitais, quer porque desde 2013 acontece mais participação popular. O conjunto disso associa certos discursos igualitários e identitários com o argumento recíproco e conservador que sanciona a identidade opressora.



IVH – Por que, mesmo nas populações periféricas, as pessoas acreditam que a repressão será contra o outro e não afetará o seu grupo?

Isso é a ganância com a qual todos os totalitarismos instrumentalizaram. Com poucos empregos por que não eliminar a concorrência de cotistas, negros, mulheres, etc? A lógica da segregação conseguiu produzir a mítica de que apenas os petistas de esquerda serão punidos. O funcionamento de massa traz rebaixamento cognitivo e regressão moral. Isso não é grande novidade.



IVH – Por que as pessoas ainda acreditam em promessas milagrosas e simples para resolver problemas complexos?

Momentos de anomia, particularmente quando se considera a anomia administrada que caracteriza o neoliberalismo, sempre dão ensejo à melancolia e ao medo flutuante. Nesta situação é tentador trocar a incerteza e o trabalho que ela impõe, pela segurança de um pai protetor, de mão forte e com retórica de violência. Intelectuais, artistas e professores não conseguiram fazer frente á lógica do Big Brother.



IVH – Por que as fake news estão ocupando um espaço tão grande no debate público?

Porque elas denunciam nossa ingenuidade e a facilidade com a qual nos deixamos enganar. As Fake News são uma versão renovada das chicanas jurídicas, da corrupção discursiva que tomou conta do país e que funcionou como condição de possibilidade para o esvaziamento das posições de centro (como PSDB) e para a emergência do radicalismo de direita. A verdade sempre se insinua nas frestas da mentira, e de fato a comprovação da existência das Fake News nos faz ver o outro lado da equação da corrupção, ou seja, não só o governo, mas empresários e seus interesses.



IVH – Como conversar com alguém que ignora fatos e dados? O conhecimento baseado no método científico está perdendo valor?

O conhecimento científico ainda não conseguiu reformular-se na sua relação com o saber popular, agora reescrito em formato digital. O “opinicionismo” e a descoberta de que a ciência não é um saber monológico e uníssono, mas está repleta de idas e vindas, de retomada de hipóteses minoritárias e de reformulação de consensos, geraram uma nova forma de autoridade do saber. Foi assim que criacionismo, terraplanismo, autismo gerado por vacinas, junto com os escândalos das imposturas intelectuais e a pequena reprodutibilidade das pesquisas em certas áreas, como a psicologia, abre espaço para a legitimidade de uma opinião, simplesmente porque ela é minha. A verdade torna-se assim apenas um consenso maior baseado em interesses triunfantes. A pós-verdade não é uma ausência de checagem e ela não desaparecerá com as bem vindas certificações, porque a pós-verdade é uma ética e não apenas uma incorreção cognitiva.



IVH – É possível mudar a opinião das pessoas com argumentação baseada em dados e fatos?

Sim, mas antes disso é preciso reaprender a escutar. É preciso responder fora do lugar no qual se é colocado. Depois de algum recuo do desejo de convencer é possível trazer fatos e dados.



IVH – Devemos evitar discussões que coloquem em risco as relações pessoais?

Isso tem um limite. Considere que esta estratégia, compreensível e salubre, implica que na hora que você mais precisa, quando o medo social e a perseguição nos atacam não podemos contar com nossos entes queridos, porque eles não vão entender que você, enquanto gay, de esquerda, negro, mulher, indígena ou simplesmente pobre, está sendo ameaçado pela onda conservadora. Isso é próprio da lógica do preconceito. Nunca achamos que aquele amigo gay, que aquela negra que é “parte da família” ou aquele pobre “tão amigo”, são como os outros negros, mulheres e pobres, que, considerados como grupos anônimos e não como indivíduos, continuam a ser sub-reconhecidos. Ou seja, a segregação só vai atingir “os outros” e não aqueles que são “como nós”. Infeliz autoengano…



IVH – Como manter a sanidade neste período de discussões acaloradas?

Levar a sério a palavra e não categorizar pessoas de modo rápido e inamovível. Escutar o outro envolve supor que podemos estar errados, cultivar a arte de criar-se dúvidas. Ler e conhecer seus “inimigos”, conforme o preceito bíblico. Lembrar ao outro, quando ele estiver “possuído pelo funcionamento de massa” de que ele “ainda” é uma pessoa, que tem filhos, que trabalha em um lugar, que ele tem uma história (que ficará registrada inexoravelmente na sua timeline) e, portanto, um futuro (que esperemos comporta alguma comunidade).



Wladimirherzog.org

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