quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Os valores e metáforas do universo Bolsonaro

Gabriel Bayarri

“Pai Estrito”. “Masculinidade”. “Guerra Justa”. “Punição”. “Sucesso”. Como o ex-capitão articulou os valores arcaicos da sociedade brasileira num discurso eficaz. Por que a esquerda precisa reconstruir seu campo semântico

Uma série de justificativas escondidas em forma de metáforas se reproduziam nas portas da casa de Jair Bolsonaro no bairro carioca da Barra da Tijuca, no domingo 7 de Outubro — primeiro turno das eleições presidenciais.



A Polícia de Choque baixou de um ônibus, ante as palmas e ao grito de “heróis, heróis, heróis”; “vamos acabar com a vagabundagem”; “é o mito, é a nossa última esperança”; “temos que recuperar Brasil”; “venho aqui para defender a família, a honradez, a honestidade frente à violência, a barbárie e a corrupção” ou “viva Sergio Moro”. Atrás erguia-se um enorme pixuleco, boneco inflável de Lula vestido de presidiário, e vendedores ambulantes vendiam o mesmo boneco em dimensões menores como lembrança, junto a cervejas e pipocas. Para cada um destes breves relatos, uma justificativa se configurava: a violência deveria ser combatida com uma política repressivo-punitiva, pois todo infrator da lei tem uma dívida que saldar; e ante a corrupção, a justiça seria a encarregada de realizar o balanço da moralidade.



Explicava o linguista George Lakoff que os marcos são estruturas mentais que conformam nossa forma de ver o mundo, nossas justificações. Estes marcos configuram e ordenam o nosso conhecimento, sistemas de crenças, valores e ações através da linguagem. No contexto político brasileiro atual, o novo uso da linguagem no projeto Bolsonaro oferece uma nova experiência de abstração e interiorização do mundo.



A construção dos marcos desse novo mundo do Universo Bolsonaro violento poderia ser explicada através de uma ampla metáfora que teria três personagens – um vilão, uma vítima e um herói. A trama seria a seguinte: um malvado comete um crime contra uma vítima inocente (um estupro, um assalto, roubo ou sequestro). Existe um desequilíbrio de forças na qual o herói tem que agir pela sua própria conta. O herói atravessa uma dura jornada de viagem, atravessa o espaço inóspito inimigo, onde um vilão essencialmente malvado e monstruoso o aguarda. O herói não pode negociar e deve vencer o vilão para restabelecer a ordem moral e salvar a vítima. O herói é aclamado pela sua vitória, pois agiu movido pela honra e glória.



A metáfora se constrói entre um antagonismo: o herói, representante do Bem e do restabelecimento da ordem frente ao vilão malvado, imagem do diabo, imoral e viciado. Trata-se da Metáfora da Guerra Justa empregada na campanha Bolsonaro, em que poderiam se estabelecer diversos nomes para obter tramas diversas: as Polícias e/ou o Exército (herói), o cidadão de bem (vítima) e o traficante (vilão). Bolsonaro (herói), o cidadão de bem (vitima) e o PT (vilão). As privatizações (herói), o cidadão de bem (vítima) e o Estado (vilão). O Juiz (herói), o cidadão de bem (vítima) e o bandido/corrupto (vilão).



Os simpatizantes de Bolsonaro simbolizam conceitos através da linguagem bélica, se percebem como vítimas, cidadãos de bem que só através da guerra e da vitória heroicas conseguirão restabelecer a ordem moral. Trata-se de uma alteração de marcos de forma generalizada que tem afetado automaticamente a demanda por uma mudança social conservadora com traços militares, um aprofundamento na visão do mundo marcada pela percepção da violência e a resposta na qual o herói deve agir pela sua própria conta.



Após o atentado a Bolsonaro e o seu processo de corporalização, onde o candidato passa a “ser todos nós”, o cidadão de bem adquire também um papel ativo como herói e como vítima frente a todos os vilões citados. Assim, em determinados casos, é também permitido esfaquear o inimigo, como no recente assassinato do mestre capoeirista baiano Moa do Katênde, que expressou seu repúdio ao projeto Bolsonaro. O agitador Bolsonaro mobiliza as metáforas e massas de sentimentos; e as metáforas podem chegar a matar.



Através desses marcos bélicos, o eleitor de Bolsonaro (em suas diversas escalas de aderência ao projeto) estabelece seu pensamento, sua razão. A razão política, além de ser literal, é metafórica e imaginativa. A razão no grave contexto eleitoral não é ausente de paixão, mas emocionalmente comprometida, e se constrói principalmente de acordo com marcos morais como Deus, Pátria e Família.



“Tenho medo de que minha filha seja estuprada”; “querem acabar com nossas famílias”; “agora tratam de esconder o comunismo embaixo da nossa bandeira, mas querem romper nossas famílias”, expressam agitados alguns de seus seguidores.



Tanto as políticas conservadoras como as progressistas têm uma consistência moral básica: fundamentam-se em visões diferentes da moral familiar, que se estendem à política e a outros âmbitos. A família conservadora estrutura-se em torno da imagem do Pai Estrito: o que acredita na necessidade e no valor da autoridade, que é capaz de ensinar a seus filhos a se disciplinar e lutar num mundo competitivo onde triunfarão se forem fortes, afirmativos e disciplinados (1). Na metáfora da Guerra Justa o Capitão Bolsonaro apresenta-se como um cara duro, viril e militar, um cowboy à brasileira que pratica rodeio em público e que, como o Exterminador Schwarzenneger na Califórnia, declarou Guerra ao terror e à violência de forma interminável.



Trata-se de um Pai Estrito, que percebe o mundo como um lugar violento e perigoso, como um lugar onde exercer a autoridade e a obediência formam parte da justificativa moral. A moral familiar que tem se articulado em torno desta figura responde de forma eficaz à metáfora da Guerra Justa. Representa um universo masculinizado, onde o pai é o chefe da família, um universo onde o pai inspira e organiza o quebra-cabeça das correntes conservadoras, desde as correntes evangélicas, grupos financeiros ou a indústria agropecuária, aos coletivos como Vem Pra Rua, Movimento Brasil Monárquico, Direita Já, Brasil 200, os Templários da Pátria, o Movimento Brasil Conservador ou o Movimento Brasil Livre.



O Pai Estrito Bolsonaro oferece uma Guerra contra a corrupção, a violência e “pela defesa dos valores tradicionais”, e se propõe como herói na metáfora que ele mesmo tem construído e apresentado: a metáfora da Guerra Justa.



Este projeto moral entende o mundo como um lugar de ganhadores e perdedores, em que o Bem e o Mal são conceitos absolutos, e onde dialogar com o vilão nos debates televisivos programados pouco serve, pois a vitória deve ser absoluta e sem diálogo — um extermínio completo. Paralelamente, a família e seus valores tradicionais devem ser protegidos neste mundo perigoso, em que os valores do Pai Estrito estão sendo ameaçados com políticas de legalização do aborto e com formas variadas do casamento civil. O herói deve agir, tem que reagir contra os vilões que querem destruir uma série de valores tradicionais entendidos como direitos. Trata-se de um mundo difícil que deve ensinar para as crianças a diferença entre o bem e o mal, que necessita fortalecer sua moralidade, não permitindo que uma “manipulação” de sua interpretação sexual nas escolas debilite sua bondade e pureza. À criança se exige obediência, pois o pai é uma autoridade moral que distingue o bem e o mal, e merece respeito. “Estamos perdendo o respeito a tudo, à família, a nossos valores”, exclama nervoso um votante do Bolsonaro. A criança progredirá de acordo com essa disciplina, que lhe permitirá se enriquecer e se defender. O modelo de Pai Estrito é militar, associa a moral e a disciplina com prosperidade e segurança, um cidadão de bem que deve combater o vagabundo e o bandido, armando-se se necessário. O pai explica as regras, e a punição se produz quando a criança se comporta mal. “Bandido deve estar na prisão ou embaixo da terra!” gritava Flávio Bolsonaro num dos seus atos de campanha.



O medo e o desespero são ativados na metáfora bélica da Guerra Justa, e tendem a provocar o apoio ao modelo de Pai Estrito em cada um de nós. Para que exista uma ordem moral é necessário defender a soberania de instituições como o Exército.



Observamos como a família Bolsonaro, liderada por Jair Messias, utiliza a metáfora da Guerra Justa tratando de se consolidar como “família com Pai Estrito”, herói que através da aplicação de uma série de práticas pós-fascistas (2) vencerá aos vilões. Em definitivo, trata de se consolidar como autoridade moral do campo conservador atraindo com seus marcos de Pai Estrito ante a Guerra Justa praticamente metade do eleitorado brasileiro. Em sua visão, o mal “anda solto pelo mundo”, conspirando, e o Bem tem que demonstrar que é forte e destruí-lo, pedindo castigo e vingança. Aí reside uma vantagem do campo conservador, pois ainda que se exija por parte do campo oposto “justiça e não vingança”, foram capazes de reconstruir esse princípio, normalizando a ideia de que “o castigo é a justiça”, cuja representação metafórica mais relevante é a prisão do ex-presidente Lula.



O modelo do Pai Estrito não significa que os milhões de pessoas que votam no Bolsonaro sejam menos democráticos, mas que encontraram neste modelo a forma mais eficaz de vencer na metáfora da Guerra Justa, detectando de forma mais nítida uma série de narrativas conservadoras que permeiam a cultura brasileira.



Desde o campo progressista urge a necessidade de adotar marcos conceituais coerentes que permitam definir os valores e sentimentos em disputa através da linguagem. É necessário entender a atual arena política como um espaço de interpretação metafórica, onde os enunciados são enquadrados pelo contexto de mediatização confusa, das redes sociais e das fake news.



Ante os tempos difíceis que virão, cabe ao campo progressista a árdua tarefa de reconstruir seu campo semântico num projeto político claro e firme, ganhando nos próximos anos ao verdadeiro vilão desde a imaginação: a ilusão e a sedução das nossas metáforas.

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REFERÊNCIAS

(1) LAKOFF, G. 1996. Moral politics. Chicago: University of Chicago Press.

(1) LAKOFF, G. y M. JOHNSON. 1980. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press.

(1) LAKOFF, G. y M. Johnson. 1999. Philosophy in the flesh. The embodied mind and its challenge to western thought. New York: Based books.

(2) TAMAS, G. M. 2000. ‘On post fascism’, Boston Review, Summer.



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Gabriel Bayarri é espanhol, doutorando em antropologia e escritor. Cursa seu doutorado pela Universidade Complutense de Madri e pela Universidade Macquarie de Sydney. Durante o período 2015-2018 foi conselheiro eleito pelo partido Si Se Puede!, integrante do movimento Podemos na Espanha.

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